terça-feira, 6 de outubro de 2015

Itinerância errática


Cruzando ruas sem destino, 
andando apenas, sem norte, 
observo quem por mim passa, 
num jogo de itinerância errática, 
como quem foge da morte. 
Sinto a pressa dos atrasados, 
os sinais corporais dos namorados, 
que em lenta passada cruzam mãos, 
e lambem sofregamente a emoção. 
E sinto o deslevo dos sem abrigo 
pelos seus sacos de estimação. 
Sinto dor e presunção, 
incompreendidos de ocasião, 
e gente cheia de solidão. 
Sinto o gato e o cão, 
no cheiro a mijo no chão. 
Encosto-me à árvore no passeio, 
faço-o não sei porquê, 
queimando cigarros, dormente, 
porque neste vazio de tanta gente, 
quem se cruza já não se vê.


Frágeis são os fios da teia de que te teces

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Baixas são as marés da bendita solidão





É na areia húmida de uma baixa-mar tranquila, em fim de tarde vazia, que me sinto.
Gaivotas banham-se ruidosamente num charco que a maré cheia esqueceu de resgatar. O sol força o horizonte num laranja amarelado. Passeio na interface molhada sem destino; a pequena ondulação acaricia-me os pés.
Não sei se alguma vez pisaste esta areia molhada, num fim de tarde de sol cansado de luzir por um dia; não sei sequer se alguma vez pisaste a areia desta praia com o olhar.
Não deixo de te sentir a mão, esse odor quente casando com o cheiro do iodo salgado.
Não sei onde estás neste preciso momento em que a água tranquila brinca a meus pés.

Sei que te sinto aqui, agora, neste local onde as gaivotas se lavam, onde a praia está vazia e o mar é o teu corpo enrolado no meu.


sábado, 26 de setembro de 2015

Dos labirintos da dor

Eles são frágeis.
No seu estado apaixonado, eles são frágeis. São como figuras de cristal.
Vivem um sonho lindo, vivem um para o outro; são o mundo do outro. E por isso são frágeis.
O estado de embriaguez emocional torna-os cegos à realidade, imunes às imperfeições, alheios aos sinais de perigo.
Se a paixão se mantiver entre os dois, podem viver cegamente toda a vida; será uma vida bonita, partilhada com carinho. Serão duas almas privilegiadas, saboreando uma vida de felicidade; coisa rara.
No entanto, se o deslumbramento acabar para um deles, se a atenção se virar para outro lado e não houver a hombridade de o revelar, mais cedo ou mais tarde o outro começa a retomar a visão.
E a realidade bate-lhe com força, esbofeteia-o violentamente, atordoa-o, deixa-o profundamente magoado.
Se ainda estiver apaixonado, parte-se em milhares de fragmentos, qual peça de cristal.
Se o seu coração for puro, guardará para si a dor, dirá que aprendeu uma lição e seguirá a sua vida com a esperança de encontrar um novo amor.
Se quisermos ser realistas, facilmente aceitaremos outro desfecho: poderá eventualmente guardar para si a dor, deixará propositadamente a ferida cicatrizar mal, de modo a ficar com um alerta para o resto da vida, tornar-se-á cínico nas relações.
E outro alguém frágil pagará.


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Da luz pálida da esperança







Espero-te
Quando todos tiverem desistido de esperar
Quando o som da rua se calar
E os amantes se despedirem
Espero-te
Quando os sinos da igreja se atrasarem
E os cães vadios se acalmarem
Quando os barcos atracarem
Os botões da rosa se fecharem
E o violino parar de chorar
Espero-te
Mesmo que a madeira se transforme em bengala
E o Inverno se instale de vez
E já não tenha voz para te dizer
Tudo quanto guardei nesta espera
Espero-te
Nessas veredas perdidas
onde as sombras jogam com as vidas
Porque sempre te esperei
Mesmo quando o não sabia


segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Vidas, secas vidas


A inocência termina com o travo da injustiça
Segue-se a percepção da morte
A ideia expande, a visão aclara e intimida
O conceito queima, inquieta, intranquiliza
A morte ganha vida, torna-se palpável.
De repente nasce a paixão
Esta trás consigo o desejo
Tudo se confunde e surge o amor
Ama-se e deseja-se, deseja-se e ama-se,
Deseja-se sem amar e quer-se ter e desejar ainda mais
Irrompe a posse e tudo se agrava
A posse é ciumenta, intolerante, agressiva, desconfiada
É um cavalo sem freios, um touro enraivecido, um tornado.
E o ser humano completa-se
O Diabo dança e Deus rejubila
A vida tumultua, a mente turva, os movimentos tolhem
Subitamente a morte aparece, abraça e estabelece o caminho
O ciclo fecha-se com um amargo sabor de injustiça (a vida soube a pouco)
O ciclo fecha-se, mas não na inocência em que começou
Coloca-se o morto no meio de uma sala
Com rendas e flores e um lenço na cara
Junta-se a família, os amigos e os conhecidos
Juntam-se, também, os que passam por lá
Curiosos por ver quem já não está
Comenta-se o defunto: uma perfeição agora que está morto
Veste-se o preto, o azul e o cinzento
Vestem-se lágrimas e esgares de dor
Passeia-se o dito até ao jardim
Atira-se ao solo e cobre-se por fim.
Fecha-se o ciclo, vamos a outro
Haja mais partos, casamentos e mortos

sábado, 12 de setembro de 2015

A inevitabilidade de um segundo




Retardada se faz a hora do desespero

Quando em teu regaço repouso

Nele o tempo pára e eu descanso

Sabendo que quando minha cabeça erguer

Será mais um adeus; até quando?

E um mar de saudade soluçada

E um não saber em que horizonte

Sentirei em mim, de novo, o teu regaço

O afago suave dessa mão nos meus cabelos,

O doce embalo da voz

Que me trava o desassossego

e me congela o tempo

No vidro riscado do meu relógio.


Ondas de calor tatuadas




Encostei-me, fechei os olhos e, quieto, fiquei a ouvir aquela música envolvente.
A melodia suave e a voz arrastada, quase forçada a cantar, trouxe-me a tua imagem.
O calor da tarde beijava-me a face e o teu rosto, chapéu-de-sol providencial, aportou recordações simpáticas, mornas e envolventes. As recordações juntam-se em novelos e desfiam-se, inevitavelmente, quando começamos a usá-las. São fios de tempo, retratos de destinos partilhados, por vezes sofridas, outras sorridentes. Memórias são orgasmos neurónicos.
Vieram em ondas, seguindo a corrente de ar quente de Agosto à sombra do teu rosto amornando a saudade. Sobre os telhados que ao longe desfilavam para mim, um farrapo de água percorrendo o horizonte.
Uma tranquila tarde de verão, um silêncio dourado, uma música envolvente e boas memórias por companhia. Não durou muito; repentinamente assaltou-me um pensamento:

A paixão que não é cuidada descamba inevitavelmente em amor
(Inconscientemente senti um desconforto)
Amor rima com dor
Caminho dos fascínios tolhidos
Dos encontros perdidos
De humores assassinados
De sofrimentos guardados
De sentimentos de posse exacerbados
Incontrolados

É o princípio do ódio
Rapidamente, interrompi a música, mandei passear as memórias, mudei a cadeira de posição e fiquei a ver passar os comboios.

Nem sempre é o que parece

e nem sempre parece o que é

domingo, 2 de agosto de 2015

SIROCO


Era o luar, uma silhueta e a sombra de uma mão
Percorrendo labirintos, meandros de emoção
A lua não descreve a visão
Translúcida, suada e quente
Um mar banhando o continente
Era a noite, era ardente
E o que a noite testemunha não se revela, não se descreve, não se conta
Apenas se sente


sábado, 6 de junho de 2015

Tempo suspenso

Esta noite eram três
O ponteiro dos minutos avariado
E eu acordado
Juntando pedaços dispersos de conversas
Retalhos de imagens
E restos de memórias
Lá colei uma história,
Que rasguei
Pelas quatro e pouco
Mas os poucos minutos
Eram os das três
Madrugadas agarradas a farrapos dispersos
Numa nuvem de pó
Que se deve ter dissipado pelas cinco
Já não recordo, mas aposto
Que os poucos minutos eram os das três
Talvez


sexta-feira, 5 de junho de 2015

Amanheceres ou dores de crescimento

Há quem amanheça nos braços de quem lhe entregou o corpo
E quem amanheça no sabor amargo de uma cama meia vazia, ou como se o estivesse.
Há quem amanheça sem saber que todos os dias tal acontece
Há-os que apenas anoitecem
E os que nada sabem da dança dos astros.

Metamorfoses


Metamorfoses são ampulhetas armadas em relógios digitais
_______________________________________________________
Não se trata de ti, nem tão pouco dos sussurros que julgas teus.
O sol não nasce por ti e o nevoeiro não desce sempre que precisas de passar despercebido.
Mostras-te altivo, alheio, seguro.
Pensas transmitir uma leveza rochosa.
Mas escondes-te sob o manto sedoso das penas que criaste.
Insensível à sensibilidade que promoves,
Plantas árvores de plástico e escreves frases desconexas
Alinhas por linhas desalinhadas, as linhas que alinhadamente constróis
E és uma sombra desbotada do teu reflexo esbatido nas gotas de chuva
Não! Não se trata de ti o choro de quem sofre
Nem o sorriso de quem gosta
Não se arredonda o calhau rolado só porque lhe admiras a forma
E não se criam silêncios porque gostas de os regar.
Nunca chegas tarde nem cedo, aliás nem sempre chegas
Mesmo quando, convencido, dizes ter chegado.
E, decididamente, nem sempre trata de ti o que de ti de facto se trata.

domingo, 8 de março de 2015

Borrões

Recordo te sobretudo de noite
No silêncio da noite, 
sob o manto de escuridão..
Recordo te todas as noites
Quando os outros dormem 
Quiçá recordando outros
Que lhes deixaram silêncios
Tal como tu 
Não o silêncio da noite
Nem o silêncio da voz…
Todas as noites, 
Quando a memória é mais viva
O meu ritual recomeça 
À sombra do silêncio
E é sobretudo de noite
Que a dor é mais pura
E brilha ao ritmo da (des)ilusão


sábado, 7 de março de 2015

Alma negra

Senti-te chegar silenciosa.
Uns indícios, discretos avisos, mas o suficiente para sentir que já me havias escolhido.
Sempre soube que virias, apenas não tinha data definida da tua chegada e não esperava que fosse tão discretamente.
Devo confessar que imaginava sentir-te chegar num frio dia de Inverno, sem chuva, apenas frio, apenas cinzento.
Contigo tudo é mistério e agora que sei que estás ao meu lado, a dúvida é por quanto tempo dado que não duvido que irás ficar comigo até teres cumprido a tua missão.
Já muito sobre ti escrevi, por vezes ansiando a tua vinda, mas a verdade é que, agora sei, nunca estamos verdadeiramente preparados para sentir o teu sopro sobre os ombros, a tua sombra sobre a nossa cabeça, o teu bafo ao nosso ouvido.
Chegaste, terei de me habituar à ideia de te partilhar por todo o lado, por todo o tempo. Agora o tempo tem outro significado, ganhou um novo peso, outra dimensão.
E eu passei a ter duas sombras.
Agora sinto ser importante catalogar as memórias, seleccionar as que de facto são importantes e livrar-me das restantes.
Quero reservar espaço para o que ainda falta armazenar e guardar, para usar até à exaustão, todas as boas experiências que vivi.
Quero aproveitar a tua companhia da melhor maneira: reler os livros que mais me marcaram, recordar as músicas de que mais gostei e voltar aos meus locais de culto.
Não me posso esquecer de voltar a passar uma tarde de Maio sentado naquele banco de granito, por baixo da centenária tília. Tem de ser em Maio para lhe sentir o aroma e colher as flores.
Se me permitires um desejo, é aí que eu quero despedir-me de ti, ao fim da tarde, quando o sol se começar a esconder por detrás da serra e o cheiro da terra se misturar com o intenso aroma da tília.
Só tens de ficar comigo até um qualquer Maio e eu prometo levar-te lá.
Senti-te chegar, silenciosa, discreta, envolvente, uma leve alteração na brisa, tal como sempre acontece quando o Verão se despede e o Outono se instala.


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Silêncios

Há silêncios que aprecio 
São como brisas frescas em dias opressivamente quentes 
São momentos de paz em fases de lua conturbada 
Não são silêncios que se procurem 
Caem-me de repente e só tenho de os aproveitar 
Mesmo no meio de multidões, são fáceis de captar e dóceis, muito dóceis 

Há silêncios que procuro 
Silêncios que me permitem retomar o ritmo calmo da respiração 
Que me deixam falar para dentro, que me equilibram. 
Esses apenas atinjo quando me faço errante 
E errante parto sem destino em busca de locais isolados
De onde regresso refeito, revigorado, reconstruído.
 
Há silêncios negros, opressivos, dolorosos, ingratos
São fruto da desconstrução de ilusões
Borrões disfarçados de quadros
Cicatrizes em pretensas carícias 
Esses são os silêncios, de que não se fala e cuja marca permanece 

E, decerto, haverá o último dos silêncios 
E esse é uma incógnita que, desejo imaginar, será delicioso. 
Egoisticamente meu.



domingo, 22 de fevereiro de 2015

Como uma brisa fria na pele



Da suavidade melancólica de um adeus sentido, do delicado sorriso que traduz um até breve ou da ingrata sensação de quebra permanente de uma ligação outrora inquebrável.
De muitas maneiras se define a ausência, mas cada ausência tem uma forma própria, um sentimento singular, uma dor única e inconfundível, uma cor.
Ausência é sinónima de saudade, embora nalguns casos traga apenas uma esbatida recordação.
Saudade é dor, pesado fardo que a memória agudiza. Saudade é vazio, nomadismo forçado, prisão. 
Saudade é o tempo contado pelos dedos de muitas mãos, um rosário desfiado no desespero do tempo passado.
Se eu tivesse de expressar a saudade, escolheria uma tela sobre a qual, a pastel, traçaria em tons de preto e cinza, carregando bem nos traços, um abstracto. Forçaria os pincéis, numa angústia revoltada, a dançarem um tango maldito, num rodopio infinito, até que a alma esvaziasse ou os dedos me traíssem. 
E em abstracto traduziria a imagem que me ocorre do sorriso que me lançaste quando nessa noite tardia, me disseste: “Até qualquer dia”.


sábado, 21 de fevereiro de 2015

UMA DOSE DE PAIXÃO EM COMPRIMIDOS DE 50 mg, POR FAVOR


Há muitas pessoas que se apaixonam e há pessoas que passam a vida a querer apaixonar-se. 
A paixão é bonita, é intensa, é um desatino. A paixão é quente mesmo em pleno inverno.
A paixão faz brilhar os olhos, agudiza os ouvidos para o trinado dos passarinhos e coloca um sorriso estupidamente aberto nas bocas.
A paixão não quer saber de todo a verdade, quer apenas alimentar-se da forma mais conveniente e, como provoca muita fome, quer estar constantemente a ser alimentada. Garfadas e garfadas de carinho, camiões de emoções.
E como é uma delícia sentir-se apaixonado, quanto mais balofamente apaixonados, melhor.
Que se lixe o colesterol emocional, que se dane a obvia cegueira analítica, há que dar beijinhos, abracinhos e andar de mãos dadas todo o tempo, mesmo que sejam hábitos higienicamente desaconselháveis.
A paixão é espectacular…mas morre precocemente de obesidade.


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Ao ritmo de uma musica outonal





Ao ritmo de uma música outonal, um cigarro por companhia, teus olhos… perdidos lá longe, onde mais ninguém lhes chega, piscam ao compasso da tristeza que te assoma aos ouvidos.
Engoles a secura da solidão, soltas o fumo cinzento, como quem solta o desespero de nada ter, de tanto querer ter, depois de ter tido.
A musica envolve-te, embala-te, leva-te ainda mais longe no limbos dos pensamentos julgados perdidos. Deixas-te levar querendo ficar; não tentas sequer reagir ao encanto mórbido dos acordes da memória.

E perdes-te na sombra dos teus tempos; o cigarro a morder o filtro e tu ali, quieto, piscando os olhos ao som de uma musica outonal, suavemente lenta, melancólica, que há muito deixou de tocar para ti.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Alma minha peregrina




Se o meu corpo tivesse uma janela
Uma ranhura, que fosse, coisa singela
Própria para almas agitadas
Sinto que a minha seria peregrina
Sairia e entraria
Ao ritmo da sua ira
E eu seria mais leve ou pesado
Mais feliz ou mais zangado
Se minha alma peregrina
Pudesse em mim estar retida
Indo e vindo, gémea de mim,
vadia


domingo, 25 de janeiro de 2015

Ato-Retrato


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Auto-retrato

Pensa.
Pensa como quiseres, mas pensa e faz-me o retrato de memória.
Faz-me o retrato mas desenha-o; desenha-o a carvão.
Observa o que desenhaste.
Observa-me com atenção, traçado pelo teu pensamento, a carvão.
Pensa melhor, apaga-o e desenha-o de novo.
Ficou pior? Ficou melhor? Não consegues decidir?
Esborrata-o!
Esborrata-o com a mão que segurou o carvão com que me desenhaste
Agora recorta-o cuidadosamente e emoldura-o.
Coloca-o na parede, escolhe bem a parede; escolhe melhor.
Tem de ficar exactamente ao nível dos teus olhos,
Num ângulo de incidência perfeita da luz matinal
Num local por onde passes assiduamente
Mas nunca o vejas
Entretanto, pensa-me



1 comentário:

  1. Caro Homúnculo Perfeito, tentar desenhar assim, requer engenho e arte mão depurada. Até hoje não atreví mão tal desenho, a brancura lá permanece vazia à espera do borrão do carvão.
    Portanto espero que lhe continue a apetecer, a desenhar e a escrever:)))
    Bem-vindo.
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Tempo

À tua volta uma azáfama de balanços do ano moribundo, agradecimentos e mensagens esperançosas de ano novo. O passado que ainda não se consumou e a esperança do que há-de vir.
À tua volta as compras de ultima hora para colocar na mesa, os convites, as combinações de encontro logo à noite, o olhar para o relógio como se este avançasse sob pressão.
Estás sentado, ouvindo um piano que debita acordes melancólicos na companhia de uma voz estranha, envolvente, cativante. E pensas no que foi, no que gostarias que tivesse sido, no que perdeste ou não aproveitaste. Despedes-te, silenciosamente dos que deixaram de te bater à porta e dos que viram a tua porta ser-lhes fechada irremediavelmente. Questionas-te pela última vez (será?) se terás agido bem com estes últimos, como se isso pesasse na tua decisão.
O piano acompanha-te nas divagações, em jeito de balanço anual. Passou mais um ano, numa fase em que os anos têm o peso de décadas e lá estás tu a pensar no tempo. Há algum tempo que notas essa fixação pelo tempo, como se ele te pesasse cada vez mais, como se medisses os teus passos pelo ponteiro do relógio.
Tu, que ao longo dos anos coleccionaste coisas, as mais diversas coisas, desde objectos a amigos, tornando-te escravo de tudo quanto foste guardando e que tanto te pesa, tornaste-te também escravo dos minutos que originam horas e das horas que traduzem dias e dos dias que dobram anos.
À tua volta todos andam presos pela ilusão cativante de mais uma festa pendurada na contagem regressiva dos ponteiros do relógio, de um copo de espumante, de champanhe ou de cava, a ilusão cativante dos ponteiros que avançam contando regressivamente.
Regressivo é o tempo que te resta, o tempo que te angustia e te faz perder no limbo das memórias, dos balanços tardios, do tique-taque mecânico de coisas que contam sem parar.
E o piano, também sem parar, faz as teclas dedilharem sons, numa imagem regressiva, num som melancólico, hipnótico, alheio à azáfama das pessoas embriagadas pelo espírito de fim de ano. E tudo acontece numa contagem decrescente, numa paisagem cada vez mais agreste, progressivamente mais vazia.
É tempo de balanço. Sempre a palavra tempo…

sábado, 10 de janeiro de 2015

Da errância do medo

Sei do meu caminho que é incerto. E a certeza desse saber torna-me errante.
Por muito tempo acreditei que a incerteza do meu caminho tinha a vantagem do deslumbramento: a cada instante algo de novo, algo mais fresco me poderia deslumbrar.
Por anos vagueie pelo mundo por diversas razões, mas sempre na certeza de uma descoberta singular.
E toda a singularidade que encontrei foi o destapar desta ignorância umbilical sobre o mundo e as suas gentes. Os animais comportam-se da mesma maneira em todo o lado, os homens não. Mas os homens pecam da mesma maneira em todo o lado, têm ciúmes comuns por todo o lado, invejam da mesma maneira, choram da mesma forma, riem do mesmo modo, escondem os sentimentos de formas diferentes. E vingam-se.
Trajo o meu caminho incerto com a certeza da minha errância e o que procuro já não é o deslumbramento, mas apenas fugir dos meus pensamentos, do confronto interior, porque o meu maior medo é ficar, por qualquer motivo, em qualquer altura inesperada, sozinho comigo.

E apavora-me o inevitável diálogo que se produziria.