quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Equações sentimentais de grau indeterminado


Amo-te e desejo-te
Mas se te desejasse alcançar-te-ia no patamar do amor?
Se te amo e te desejo,
então desejo amar-te
ou amo desejar-te?
Poder-te-ei amar sem te desejar?
Sei que te posso desejar sem te amar,
mas não sei se é suficiente para ti.
Posso desejar amar-te, se já te desejo tanto?
Posso mesmo amar desejar-te sem nunca te ter.
Será que te quero mesmo amar,
ou é um pretexto para experimentar um prazer sem igual?
Posso desejar querer amar-te, mas isso não é forçar?
Quero amar-te?Não, soa mal.
Desejo-te tanto que me atrevo a dizer que te amo,
mas se estiver enganado no amor, não estou certamente no desejo.
Umas vezes desejo-te, outras...amo-te.
Muitas vezes, nem uma nem outra.
Mas sei que te desejo e te amo,
ou será que é ao contrário?
Sei, convictamente, que te quero!


domingo, 17 de dezembro de 2017

Se assim fosse ou a imprevisibilidade dos ventos



Diz-me que sim
Não penses
Deixa-te levar pelo momento
Deixa falar o sentimento
E diz-me que sim
Pendura-te em mim e deixa-te ir
Dá-me esse sorriso rasgado
Rasga o preconceito guardado
E diz-me que sim
Atreve-te a ir sem rumo
A sentir no limite
A soltar as emoções
Colhendo as sensações
Arrisca-te a ir
E diz-me apenas: sim


A Emoção do Vento Latino


Lança-me um olhar
Um fio ténue de ternura
Um sorriso a despertar
Um sopro de frescura
Dar-te-ei um suspiro
Um abraço sentido
Um braço contido
Um mundo invertido
Outra forma de estar
Todas as ondas do mar
O meu olhar

E a brisa a convidar
Vem, vamos voar


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Retrato a tinta da china



Planta sombras em noites de lua cheia
E colecciona mágoas entre folhas de livros
Transforma monólogos em conversas ao espelho
E discursa em travessas empedradas cheias de ninguém
Ansiosamente procura a solidão
Raramente tem o prazer de a encontrar
A paz é uma palavra muito curta
Para ser mantida
E a liberdade só chega no fim
Perdeu o mapa do amor num jogo de póquer
E rega esquinas em noites bastardas
Não tem norte, não tem rumo
Não cultiva o aprumo
Não é ninguém e ninguém tem
Atreve-se a pensar que é alguém
Mas apenas quando lhe convém
Fala no gume fino de uma navalha romba
(Herança do tempo vivido)
Tem-se a si e pouco mais
Diz-se muito bem servido
Ele, um fado, um copo de vinho e um trompete desalinhado.




Do efeito colorido do pó


Amo-te hoje porque amanhã não existe
E preciso sentir-te como as flores precisam do orvalho da manhã
O teu aroma é como o cheiro húmido da terra
Fértil, ávido de vida e de calor
Amo-te sem to saber expressar
Trôpego na ansiedade de te sentir
Carente dessas mãos presas nas minhas mãos
Até que o dia chegue ao fim
Porque amanhã não existe
Amo-te e, nesta ânsia de te ter
Esqueço a fome, esqueço o ar
Só preciso saciar a sede insana no teu olhar
Num sorriso, numa lágrima, num esgar de desdém
Amo-te hoje e para além da morte
Porque esta existe e amanhã é uma incógnita
(E o pêndulo não pára)





sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O compasso do tempo



Penso nas horas
Passo a passo
No passo descompassado da vida
No compasso dos ponteiros
Num círculo vidrado ao olhar
Vejo o tempo a passar
O mecanismo perfeito
Onde a tempo me acerto
É a medida desta vida
Contada a cada momento
No tic tac repetido
Agitado num piscar
Num movimento perpétuo
Sentido até nas desoras
No ritmo lento das demoras
Na pressa dos desencontros
No pressuposto da certeza
Que perpétuo é o tempo
Que não a vida que o sente


terça-feira, 28 de novembro de 2017

Do indelével jogo dos sentimentos marginais



"Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo." (in os 10 mandamentos)
________
E a casa da tua próxima e o homem da tua próxima? Esses já poderás cobiçar sem que a fúria Divina se abata sobre ti e a tua casa?

«««««««««««««««««««««««««
Primeiro motivo: ambos existem, pelo que há a probabilidade, mesmo que diminuta, de um dia se cruzarem.
Segundo motivo: frequentam espaços comuns, têm amigos comuns ou não nada têm em comum.
Terceiro motivo: apercebem-se da existência do outro, seja no local de trabalho, seja público ou da forma mais inesperada, mas apercebem-se da existência mútua e iniciam diálogo.
A partir daqui o jogo começa; as conversas, inicialmente ocasionais e vagas, tornam-se progressivamente mais frequentes. Trocam ideias, opiniões, gostos e preferências.
Uma fome crescente de contacto apodera-se de ambos, embora ainda não tenham consciência que o desejo lhes ganha espaço à razão. Quando se apercebem já a carência se instalou.
Apaixonam-se ou, tão só, desejam-se e, inevitavelmente, acabam por consumar o acto; todo aquele crescendo de sentir, de partilhar de querer possuir, acumulado ao longo do tempo, explode em sensações de partilha de novos territórios, mapas de pele nunca antes visitadas. O acto é intenso, como intenso é o que de bom apenas se faz uma vez. E fica a sensação de pouco, de querer mais e mais e mais rapidamente.
A dependência cresce mas a distância é grande e grande é o risco; e o risco, sendo perigoso, é motivador, desafiante.
Surge a primeira regra: não serem apanhados e a segunda: não ferirem os seus pares.
E partem para a clandestinidade.
Aproveitam cada fracção do pouco tempo que dispõem de partilha. Tocam-se e sentem-se como se fosse a última vez; escolhem cuidadosamente os locais, vestem delicadamente os olhares partilhados e partilham-se freneticamente, em batalhas sofregamente húmidas.
O risco de perda e a incógnita da próxima vez torna ainda mais intenso o contacto.
E é a intensidade do beijo que distingue os amantes marginais.



sábado, 18 de novembro de 2017

Fragmentos de jardim



Suspirou profundamente, sentado naquele banco de jardim, banco de momentos silenciosos.
Abriu os olhos, olhos espelhados de noites mal dormidas, noites pressentidas.
Os cães passeiam no relvado, chorando em troncos de árvore, num ritual ancestral. Acredito que procurem a árvore original, aquela onde o Adão dos cães se aliviou pela primeira vez. Legados caninos que escapam à sensibilidade distraída dos donos.
Os melros banqueteiam-se por entre saltos acrobáticos; a chuva da véspera animou os vermes da terra e estes animaram a passarada.
Mesmo em frente, um jovem casal vive o momento calmo da tarde; certamente ainda não tiveram a primeira prova de dor. As dores atacam quando menos se espera, de forma cruel, intempestiva. E tudo depende da resistência, da indolência, da sensibilidade para ultrapassar, mascarar, ignorar ou conviver com elas.
Já não se recorda da sua primeira dor; as primeiras dores não são como os primeiros beijos; por serem tão fortes, tão intensas, o consciente ordena ao inconsciente que se livre dessas memórias por DHL.
O primeiro beijo…ah, o primeiro beijo é outra coisa; é sabor a morango, em travo de cetim; é ardor na face e olhares por cima do ombro da companheira, com receio de que alguém esteja a olhar. É intenso, é inocente, flui da boca como azeite. O primeiro beijo é imediatamente emoldurado na memória, em tons de vermelho vivo.
Sorriu perante a recordação e imediatamente fechou a expressão em memória da última dor.
Os cães passeiam, os melros comem em saltos de ballet, os namorados excitam-se e sangram carícias e o homem puxa o chapéu para os olhos, desce o queixo para o peito e suspira a emoção.



Serão as memórias fragmentos de sentimentos? Dores e sorrisos em latas mentais de conserva...


Apocalipse ou a fragmentação do ser básico


12 E vi os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono; e abriram-se uns livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida; e os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras. 13 O mar entregou os mortos que nele havia; e a morte e o Hades entregaram os mortos que neles havia; e foram julgados, cada um segundo as suas obras. Apocalipse 20:12-13



E vi a inveja, a injúria e a incúria. Vi homens e mulheres invejando mulheres e homens.
Vi petardos de ignorância lançados a outros e mentiras escondidas num manto de cobardia.
Vi a mesquinhez e a baixeza mascarados de altruísmo e vi a dor dos atingidos.
E vi a nódoa e os cães de duas patas, caminhando hirtos como gente, falando como gente, mordendo como gente e como cães. E vi os vermes e os vermes falavam enquanto se retorciam e eram congruentes na sua linguagem de verme.
E vi doutores e carpinteiros, poetas e engenheiros, políticos e pedreiros, feridos de corno, doridos na alma e quebrados no amor-próprio.
E vi risos forçados e acenos acobardados e adulações e manifestações invertebradas.
Vi o ódio e a cegueira e sentimentos não retribuídos, ferindo como lâminas, minando o discernimento.
E também vi uma centelha de pureza quase extinta, quase nada.
E avancei pelo meio deles e não senti pena, não me dizem nada.
Ri-me e não me detive por nenhum.



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Meu amor



O amor
O poder do amor
O maravilhoso poder do amor
O maravilhosamente grandioso poder do amor
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O poder do amor só tem dor
É ferida, é ardor
É desejo com pudor
É um vai lá por favor
Que hoje estou cheio de dores...
O poder do amor
É primavera, é alergias
É inveja, é ciúme
É dor de corno
É o costume
Possessão
Consternação
Choro, dor e pregão
É pra vida e não pra morte
É excelente, com muita sorte
O amor é uma flor
Colhida no ano anterior
É sorriso e é lágrima
É traição
Devoção e emoção
O amor é bipolar
É pra toda a gente usar
É democrático, é tirano
É o fogo do candeeiro
É o melhor e o pior
É o poema, a enciclopédia
É a Maria e a Noémia
O Joaquim e o André
O amor é o que é
Gosto muito mas nem tanto
O amor é um espanto



O amor é a invenção mais profícua do diabo

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

• Alucinações em www.com ou Realidades em WiFi


Vozes sem rosto
Multidões sem forma
Cortadas por formas geométricas
A preto e branco
Céus de violetas
Em tons caqui
Fumos espessos
Escapam por entre os dedos
E a rua flui até ao seu fim
Ao meio um cruzamento
Ou será uma encruzilhada
Onde mulheres se perdem
Se mostram, se expõem
Um red light district.com
Em formato de bolso
E os homens espumam
(os homens espumam sempre e facilmente)
Os homens agitam-se
Os olhos excitam-se
Em céus de violetas
Com tons de caqui
Conversas estudadas
Frases usadas
Dirigidas, manipuladoras
Conversas pobres
Que acabam em trapos espalhados no chão
E os céus de violetas anunciam tempestade
E há sempre uma nova praia
Uma enseada à espera de ser descoberta
E um porto de abrigo usado, desgastado, devoluto
A cabeça estala, a dor agudiza
A noite vai longa, quase morta
E o copo nunca esteve vazio



quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Migração



Sei o quão frágil é respirar
E como engana o bater do coração
Mas a esperança é soberana
Mesmo pra quem a renega
Por mais dores que o passado traga
Por isso desejo, por isso rogo
Que venha o inverno
E me traga um bilhete teu
No seu vento selvagem
Me mova como um ponteiro de bússola
E me indique o norte
No meu pregão peço a coragem
Para partir sem pensar
Para ir sem hesitar
E finalmente te encontrar
E no teu calor me perder
Porque teu pretendo ser
Até que o inverno se acabe
Até que a memória se apague
Até que desistas de mim



domingo, 1 de outubro de 2017

Renovação ou cansam-se-me demasiado os olhos nos dias que correm



Dos sentimentos vividos
Dos poucos que dei
Dos muitos que roubei
Dos risos e dores
Dos escritos de autor
Mágoas provocadas
Feridas mal curadas
É a dança da vida
Bem ou mal vivida
Em paisagens guardadas
Em memórias cuidadas

Do que me falta fazer
Já tão só não me sinto
Despedi-me me do banco de pedra
Guardei um ramo de jasmim
E a Serra parada despedindo-se de mim

Do espelho já não guardo imagens
Outros mares, outras margens
Novos olhares, ondas baixas
A paisagem, enfim, mudou

E da tormenta guardei a calma
Da luta quero intervalos
Fumados em finos retalhos

É tempo de repousar os olhos cansados
Na imagem
Que a sombra me trouxe doutra paragem

Já outrora fui quem esqueci
Uma lágrima perdida por aí.


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Pedaços de mim




Cala-se a voz no silêncio; do sonho
desperto de ti. Ensandecido
te procuro e não alcanço. Esquecido
torno a dormir. Medonho
é o desejo de te sentir
Tremenda a vontade de fugir
E nesta contradição pendular
balanço entre não querer e alcançar
Maldigo a hora em que senti
Quão gostoso é gostar de ti






Teia de Luzes ou Efeito Psicotrópico



Não sei se é do efeito da luz na vidraça, do aroma da erva molhada ou do sussurro do vento no espanta espíritos. Talvez seja apenas uma calma induzida pelos fármacos ou a ilusão do tempo suspenso.
Sinto um sossego incomum, indolor e inebriante.
A aranha continua impávida a tecer a sua teia no bordo do vaso do jasmim.
Um jovem casal passa na rua. Na sua discussão cortam o fio que suspende o tempo interior.
Ele, agressivamente, questiona-a. Ela hesita.
Apetece-me interceder por ela, de tão óbvia e merecida a resposta, no entanto prefiro remendar o fio e voltar a suspender o tempo.
Sentado no sofá imagino um retrato, dessa outra que me entorpece, pendurado na parede branca, mesmo em frente. Pequeno, desenhado a carvão, apanhando-lhe as particularidades tão peculiares do rosto.
Ficava mesmo bem o retrato dela na parede branca, mesmo em frente do sofá.
Lamentavelmente, não quero dispor do tempo suspenso para a desenhar.
Os raios de sol perdem terreno no soalho, ou talvez seja apenas o efeito da luz na vidraça.
A aranha continua a sua interminável dança rendilhada no vaso e eu suspendo as pálpebras no fio da memória.






sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Equinócio



São os traços mutáveis da paisagem
E o comportamento dos animais
Em mim sinto a mudança
Os cinzentos iniciaram o retorno
Cruzaram-se com as aves migratórias
As videiras estão em fim de prazo
Os doces figos despedem-se
A noite ganha avanço ao dia
E o vento trás as primeiras chuvas
É tempo de interiorizar
É a estação da nostalgia a chegar
É mais ou menos um Outono?
Pressinto o menos a ganhar
O fim ganha sempre vantagem no início
E novas aves chegarão com o solstício de Dezembro




Acredito que o equinócio se dissolva no solstício

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Moldando em cera



Desta vez olha de frente e sorri.
Sorri uma lágrima quente, uma gota sentida,
a expressão de um sentimento salgado.

Desta vez olha de lado
faz o teu olhar enviesado.
Sorri um sorriso distorcido
e de novo roda a cabeça
e de frente afoga a diferença

Mas sorri...


sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A arte do silêncio



Gradualmente as respirações abrandaram
Os corpos ainda luziam da transpiração
Ela enconchou-se nele e, por cima do ombro, lançou-lhe um sorriso comprometido
Ele retribuiu com o olhar brilhante de cansaço
Afagou-lhe os cabelos
Beijou-lhe a nuca
E enlaçou-a
Numa nova dança

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A suavidade densa da silhueta perdida


A música tocava suave, em volume sussurrado, na parte instrumental que antecede a voz suplicante.
Não recordava quantas vezes a ouvira. Provavelmente, tantas quantas a melancolia lhe enchera os olhos de um vazio baço, virado para as memórias.
As suas memórias eram como uma mala de viagem estampada de autocolantes com os nomes das cidades, tão em voga nos anos 60 e 70. Memórias excessivas, memórias de excessos. Acendeu mais um cigarro, no borrão do anterior; era escusado gastar pedra de isqueiro, já bastava consumir os pulmões.
Gostaria que as memórias fossem como a cinza do cigarro: frágeis e leves. No entanto sabia –as densas, persistentes, incómodas.
Uma vez mais recordou-lhe a face e amaldiçoou a memória. O fumo escapava-se por entre os dedos, o fumo tinha a forma dela. Sempre que queimava a envenenada esperança de a voltar a encontrar, o fumo brincava maldosamente com ele formando a silhueta dela antes de desaparecer no ar.
Entrou a voz exactamente quando era suposto entrar, logo após aquele solo de viola que tanto o arrepiava. E a voz suplicava e as memórias ardiam-lhe os olhos e o fumo empurrava-as para os seus olhos doridos, batidos, cansados da imagem repetida, cada vez mais viva, em carne viva. E o tom suplicante erguia-se acima da bateria e a água escorria dessas janelas vazias, lenta, num movimento não linear.
O clímax musical, o soluço final e a imagem que não conseguia banir e a cabeça a latejar e o cigarro a acabar e a noite mais cerrada e infindável.
A voz calou-se no mesmo tom sussurrante em que começara.
Porque é que as memórias espinhosas não são como as músicas, interrogou-se ele? Porque é que não se podiam simplesmente calar?
Instalou-se o vazio no vazio da esperança. Achou por bem não passar de novo aquela música, acendeu novo cigarro e desejou ser vencido rapidamente pelo cansaço.
Em vão…
E, à medida que a noite avançava, a sombra dela alastrava sobre si.



terça-feira, 5 de setembro de 2017

Envenenemos o medo



Não te tentes
Não queiras querer
Não te sujeites a pertencer
Desenha um círculo em torno de ti
Chama-lhe fronteira
Chama-lhe muralha
Imagina-o parede
E não deixes nada entrar
Reconstrói-te
Refaz-te
Reforça-te
Mas não te tentes
Não te deixes tentar
Não voltes sequer a imaginar
Contém-te, detém-te
Usa mas não sintas
Utiliza mas não recordes
Se, por fraqueza, usares, esquece
Se, por necessidade, utilizares, ignora
Se te sentires fraquejar, desaparece
Mas não te tentes
Não desejes
Não recordes
E não te envolvas
Usa sem guardar
E resguarda-te no teu círculo
Fecha a fronteira
Ergue a muralha
E não arrisques a dor


domingo, 3 de setembro de 2017

sombras de uma alma perdida



Quando escrevi esta mistura de "coisas", em jeito de duplex ou macedónia, datei-o no final do Outono; verifico que afinal estava enganado. Os seguintes gatafunhos, organizados em pretensas frases, são intemporais, pior, são como vulcões adormecidos: nunca se sabe quando se reactivam e quanto podem destruir.

Fase cinzenta, introspectiva, caracterizada por um pessimismo agudo, um olhar para dentro, incómodo, amargo. Os dias que antecedem a morte do Outono propiciam a auto flagelação mental.
A perspectiva ambígua do mal e do remorso retratada na sombra.Tudo deriva do pecado ou do seu conceito, algo que fica impresso na mente, cravado a ferro em brasa, nos jovens-vitelos de leite-que todos fomos.
Ai os pecados, essa coisa insubstancial com que fomos formatados em criança, gratuita e altruisticamente por homens de vestidos de preto, dizendo-se porta-vozes de um ser maior, de um bem superior, de uma lei suprema e inquestionável.
O pecado é como o desejo: inevitável e muito apetecível.



As sombras da alma são vermelho sangue
Feridas abertas, disformes
Pústulas do teu lado mais sombrio
Que te acordam tarde na noite
Em revoadas de suores frios
As sombras da alma
São os teus fantasmas de estimação
São aves de rapina pairando
Sobre a tua memória
Avisos do passado, gritados no presente
Alertando-te o futuro, inutilmente
São gritos de dor, cáries da consciência
São dores embaraçantes
Que alimentarão para sempre
O borralho da tua vergonha


sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Para quando o Inverno?


Para onde olham os velhinhos sentados nos bancos de jardim?
Olharão o seu passado em episódios ou medem a distância até à meta?
Mal se movem, mal se tocam, falam com poucas e baixas palavras
Os seus olhares são de uma lentidão quase estudada e parecem captar o mais pequeno pormenor
O que pensam os velhinhos sentados nos seus bancos de jardim?
Pensarão em ampulhetas, em albuns de fotografias?
Nos tempos passados, no tempo que lhes resta, no que irão fazer quando se levantarem do banco?
Quão longe pensam os velhinhos sentados nos seus bancos de jardim?
Quem são os velhinhos sentados nos bancos de jardim?
Vestem-se de Inverno, sonham dias de Primavera


terça-feira, 29 de agosto de 2017

"Gone" ou de como acabar com o medo



Quando desaparecer
acender-se-à uma vela num canto escuro de uma janela
Haverá uma fotografia antiga, desbotada pela humidade olhada
Uma mão dirá adeus ao sentimento quebrado
Um cão uivará à lua após ter mijado num candeeiro
Uma prostituta entediada virar-se-à de lado na cama alugada, em silêncio
Alguém sufocará um soluço
Alguém matará um beijo à nascença
Alguém sorrirá de tristeza, clandestinamente
Os homens do lixo farão o habitual ruido nocturno
e um gato queixar-se-à da presa perdida
Um homem atravessará a pé a rua, de regresso a casa;
roupa desalinhada, hálito etílico
Uma mulher simulará de novo um orgasmo
Um bébé chorará pelo peito materno
E alguém dirá em silêncio - saudade
soprada sobre a chama de uma vela  que,
no canto escuro de uma janela,
sufoca um soluço de vento
e imagina uma silhueta afastando-se
no céu nocturno


sábado, 26 de agosto de 2017

Forma difusa



De repente pressenti um vulto na janela;
um perfil bem conhecido.
Fixei o olhar e nada vi,nada se fixava por detrás do vidro.
Foi a vista que me traiu, pensei
porque esse vulto há muito que o não via à janela.
Um vulto que era um rosto,
um rosto que a janela me abria
e por vezes se escondia, sorrindo
fazendo me a janela abrir para o encontrar.
Mesmo não tendo ouvido o sorriso,
tive o instinto de me dirigir à janela e procurar.
Mas contive-me. Porque esse perfil de rosto desenhado
num sorriso bonito e deslavado
desapareceu por si na brisa do seu querer.
E marinheiro não volto a ser
para me largar no desejo, sem leme nem vela a preceito
abrindo janelas de vento sem jeito,
e me afogar sem nada ver.
Se miragem não foi, voltará
e na janela se fixará e dessa vez baterá.
Se se quiser dar a ver,
virá




Amnésia



Com um pedaço de grafite
e de olhos bem fechados,
esbocei-te os traços da cara.
A preto te refiz na memória do papel
De olhos bem fechados mirei a criação
Eras tu, tal como te vi
da primeira vez que nos desencontrámos,
por sinal no unico encontro que marcámos.
De olhos bem fechados, arranjei te uma moldura
e recriei um prego com dois traços.
Pendurei te na parede, mesmo em frente da janela rasgada
para que ficasses luminosa.
Agora sento-me à tua frente,
num ritual diário
e recordo com deleite a primeira vez que te não vi.



segunda-feira, 14 de agosto de 2017

E o asno cegou de dor



Hoje doí-me um mundo em cada segundo
Dói arrancar de mim um veio de luz
Vendo-a sorrindo pra mim de forma "frágil"
Dói abrir as mãos, apartar os braços, virar a cara
Por um pedido, por um clamor, por um medo tolo
Fere-me de morte sempre que a razão, o conforto, o temor
Vencem o desejo, a mais pura acendalha da vida, a paixão

O que as asas aproximaram,
As penas afastaram

E doí-me a inercia, a falta de reacção,
A aceitação não aceite
O baixar de braços, os braços amputados
O torpor, o estupor do destino,
Esse cabrão que abomino,
A mentira maior.
É a vida…não é não!
São as teias construídas,
São os nós de marinheiro
Os bons costumes castradores
Esses abutres dos Valores

Dói-me não conseguir arrancar esta dor
Que me magoa e corrói



sábado, 12 de agosto de 2017

Existem ontens?



Estás errada, já te disse.
Ontem não nos vimos,
ontem não falámos.
Dizes que dissemos mas não ouvi.
Estava noutro lado.
Ontem foi daqueles dias em que saimos por ruas diferentes,
daquelas que não se cruzam,
daquelas que não se tocam,
daquelas que não se veem.
Ontem não nos tocámos, nem com a voz,
porque era impossivel.
O que parece ter sido não foi,
o que foi esqueci.
Porque ontem não te vi,
vi-te a sombra
que a lua sarcástica me deu,
mas não a ti.


segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Pétalas



Uma flor não é uma flor
É uma cor, uma dança colorida, uma palete de vida
É um cheiro, são cheiros, é perfume
Misturado com terra húmida e seca
É o zumbido dos insectos
E o suave empurrão da brisa no seu caule
Uma flor é a dor da deciduidade
O desmontar breve da beleza singular
Uma flor, fragilidade
Canção ao luar, canção breve, exaltada
Da beleza singular, da dor da deciduidade
Da secura da terra, do cheiro da humidade
Da ferida saudade, dessa flor
Essa flor


domingo, 6 de agosto de 2017

Non sense



A morte é uma puta com classe...



Há sempre uma estrada que não percorreste, um caminho por inventar, uma musica nova a trautear. 
Há a promessa de frescura e aventura. 
E há a beleza contemplativa, o pulsar forte da vida, numa veia atrevida. Há a certeza da morte, mas acredito na sorte e na Santa Trindade, cada vez mais com a idade. 
Há o equilíbrio torto e o corvo morto, na berma da estrada perdido, mesmo por baixo de um aviso que diz: Perigo!Derrocada.
E esta vida tão malvada que nasce baptizada de morte; ganha sempre o mais forte, mesmo quando ganha nada.
E há de novo uma estrada, uma conversa sem nexo, uns sapatos estragados, uma fome, uma sede, um frio tão cerrado e um chaparro ali à frente. 
Vou ou não vou? 
É indiferente.




sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Fragilidade sentimental


There's always a strange feeling that something's bizarre in me



Não te vás, queda-te junto a mim
Sinto-te o calor do corpo
Sinto-te a forma ondulante
Preciso de ti
Se te vais é o fim
Fico praqui, corpo morto
Perdido no teu instante
Não te vás, chega-te a mim
O dia não precisa de ti
O mundo não pára sem ti
Mas eu sem ti não tenho mundo
Fico perdido e, no fundo,
Temo por mim se não te sentir aqui.



Blind date



Na rua escura de passos compridos mas cadenciados,
calcando poças de água, e marcando as sombras anónimas que me seguem,
fui...
percorri travessas solitárias e veredas nuas
Em mim, passeei comigo, solitário de mim
e quando a lua apareceu,
vieste e ficaste a meu lado.
O meu lado cinzento...
Fizemos as pazes e, à sombra da noite, sentimos por fim a paz entre nós.
E em paz seguimos,
pelas ruas escuras,
pelas travessas solitárias, acompanhados de nós,
de mãos mal dadas, mas unidas
e junto ao rio nos detivemos
e em silencio acordámos
na tranquilidade que nos devemos.
Foste quando a lua se escondeu numa nuvem tardia,
mas sei que com ela voltarás, outra noite,
noutro dia,quando for.






Des_Dita



Não mais desejar, não mais gostar, tão pouco amar.
Fazer não sentir, fazer não querer
E, sobretudo, não querer sentir ao fazer.
Conter, travar a emoção, apenas fazer.
Não deixar crescer, não deixar doer; reter.
Ignorar a beleza, cegar.
Ignorar as palavras, ensurdecer.
Passar de viés, não reconhecer.
Não dar, não deixar, blindar.
Fintar o destino, ignorar.
E no final deixar-se estar; aguardar
que algo que venha não queira ficar.
Porque já não há espaço neste lugar.

A desilusão é uma mulher de véu cinzento, cinta cingida e presença constante.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Do desespero olhado


Há olhares da dimensão do mar, um mar cuja distância se mede pela tristeza e a profundidade pelo desespero de não o poder navegar.
Senti ser a minha estrada esse mar, esse mar que me olhava, do azul da distância que nos separa.
E senti-me rodopiar nesse mar, nessa imensidão em turbilhão.
E perdi os sentidos na sua brisa suave, e no seu movimento ondulante senti-me marejar.
Um mar que deveria ser meu.
Por vezes um homem afunda-se na dor e, por mais que resista, afoga-se no magnético desejo que não consegue evitar.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Amor clandestino



Assim que a viu entendeu haver amores proibidos.
Viu-a pela primeira vez quando os seus olhos se tocaram; só os olhos sabem tocar com a fragilidade que a verdade encerra.
É deste modo que as pessoas se vêm a sério, olhos nos olhos, olhos acariciando olhos em conversas sem som nem segundos significados.
Quando os seus olhos se encontraram, tardava o inverno na teimosia do outono, compreendeu duas coisas: o encaixe das formas e a percepção de algo que ultrapassa o desejo.
Seria, sem dúvida, o sentimento que os uniria, um amor saltimbanco numa relação contrabandista.
À margem da lei dos “bons” costumes, encontros furtivos, mãos sedentas de afectos obrigatoriamente contidos mas intensos, em carícias discretas cuja marca perdura na pele.
Aqueles dois tornaram-se o outro lado do amor, o amor fora da lei, o amor bandido, não aprovado, não benzido, não permitido.
Amam-se à distância de uma sociedade, porque nada mais lhes é permitido, mas o seu amor é vadio e não se deixa subjugar.
Amam-se na clandestinidade da razão, na distância de uma mão, mas sentem toda a liberdade de partilha, como só dois amantes o sabem sentir.
E eu, velho niilista empedernido, testemunha de tal compromisso, invejo amargamente a forma discreta, mas tão intensa, como partilham os seus olhares.


A cumplicidade da pele



Agarra a minha mão com a tua mão e leva-me a passear, de mãos dadas, pelas ruas da cidade.
Não fales, nada digas, a fala é para os principiantes, as palavras para quem quer seduzir.
Não precisamos disso, já atingimos aquela cumplicidade dos sorrisos, dos gestos dissimulados, do simples aceno de cabeça.
Ambos sabemos que direcção quer o outro tomar, mesmo antes de o dar a entender.
E os nossos silêncios valem mais que compêndios de ciência social.
Por isso não digas nada, pega na minha mão com a tua mão, toma a teu cuidado esses dois mapas de vincos vividos e leva-me por aí ao sabor da pele que nos une.

Ingenuamente feliz, escreveu na parede enquanto trauteava uma canção:

Este é o momento perfeito
Para te esculpir na luz
Que me inunda os olhos


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Terão as paredes sentimentos?


Na viela suja alguém pintou um anjo na parede. De fácies africana, tem as mãos no rosto numa expressão de sofrimento ou desespero. Olho com atenção o belíssimo desenho e verifico que tem uma asa cortada.
Sentado por baixo da imagem um sem-abrigo. Esfarrapado, segura na mão direita uma garrafa de vinho e mantém uma discussão com a sua mente. Terá um alter-ego ou é da bebida? Na esquina, posição aparentemente provocadora, uma prostituta procura aliciar um passante.
Esta parte da cidade não se encontra nos cartões postais, nem na publicidade feita para atrair os turistas.
Esta é a parte da cidade onde me perco por horas; percorro as estreitas ruas sempre húmidas. Curiosamente as outras ruas, as que são percorridas pelas pessoas “decentes” da cidade, não têm humidade e estão sempre pintadas.
Já me tenho perguntado se as ruas esquecidas choram o abandono, se não sentirão, sofridamente, o desdém de quem passa por engano ou apenas para atalhar caminho. Se sentem saudades doridas dos tempos em que eram novas, pintadas e iluminadas. Será a humidade sempre presente nestas velhas e sujas ruas fruto do seu desespero?
Sentirão as paredes o desprezo de quem por elas passa?
As ruas e vielas que percorro nos meus momentos de introspecção, são sujas, tristes e húmidas. Assim como os meus pensamentos! Por isso as procuro; procuro uma paisagem onde possa mimetizar o estado de espírito; é uma terapia, um cerimonial, uma insanidade inócua, um vazio desesperado por ser preenchido.
O anjo detalhadamente pintado na parede persegue-me; sinto como minha a sua expressão de perda, o seu desespero, a mutilação.
Revejo-lhe a face tapada pelas mãos de um realismo impressionante e parece-me ter notado algo brilhante parecido com uma gota de água escorrendo por baixo de uma das suas mãos. Teria sido ilusão de óptica, um preciosismo do artista ou o choro da velha parede?

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Se ao menos soubesse



Vejo-te falar e não oiço
Duas linhas carnudas de sangue
desenhadas na maldade da perfeição
Traços de uma sensualidade que me ensurdece
Frágil se torna a luz no teu reflexo
Teus cabelos, ondas revoltas onde meus dedos se afogam
E tu uma praia
Onde as gaivotas esboçam no ar o meu desejo
E a areia a cama onde te quero
Cega é a ausência do teu toque
E negra a distância que nos separa


Se soubesses o quanto o pensamento me foge para ti
Se ao menos entendesses o quanto me prendes a razão



O meu mundo...



O meu mundo é um rio
As suas margens são do tamanho dos caprichos
Caprichos do tempo,
ensaios de sorrisos e lamentos
E as águas turvas de sentimentos
Emoções que não sedimentaram
Agruras que não assentaram
O meu rio é um mundo estéril
Nele libertei a esperança
Na forma de um barco à vela
Barco feito de papel
O meu mundo é uma pia
Pia de pedra fria
Benzida em contra-mão
O meu mundo é uma mão
Mão onde cabe o meu mundo
O meu mundo é um rio
Cujas margens, um capricho,
Cabem na palma da minha mão




quarta-feira, 5 de julho de 2017

Do efeito do sal iodado



Sentado na areia húmida da praia, as pequenas ondas brincam em frentes dos meus olhos. Sente-se uma brisa morna e os salpicos de água acalmam a pele queimada.
Cheira a iodo; caramba, desde que tenho recordações, este cheiro está sempre presente.
Com os dedos puxo lentamente o cabelo molhado para trás enquanto o sol apaga as últimas gotas de água na pele.
É uma tarde tranquila nesta praia silenciosa e os pés fervem na fina areia.
Ela iria gostar. Estou a divagar; eu iria gostar de saber que ela iria gostar de estar aqui deitada ao meu lado, partilhando a areia escaldante, a brisa morna, a água refrescante e o silêncio tranquilizante.
Passaram-se semanas e dela tenho apenas a imagem e a distância. Onde estará? Em que pensará? Será que está neste momento a partilhar, sem o sabermos, o mesmo pensamento? E se estiver, sentirá o calor que emana da areia, a frescura da pele molhada, a brisa suave que acaricia o cabelo e o cheiro iodado do mar? Terá ela guardado a minha silhueta num local seguro e acessível?
Demasiados pensamentos em formato interrogativo nesta tarde quente de verão, numa qualquer praia algures na costa, sob um forte cheiro iodado de décadas.
Por onde caminharão os seus pensamentos? Colidirão com os meus sentimentos?
Levanto-me, dirijo-me à beira mar e mergulho neste manto transparente.
Uma sensação de frio percorre-me agradavelmente a pele e quebra-me o fio do pensamento.
Não sei se é o fluxo do vento, o sentido da corrente ou a silhueta feminina que me deixa à deriva.
Sei que cheira intensamente a iodo e a sal.


terça-feira, 4 de julho de 2017

Na sombra das negras asas





Não deixes que esses braços te abracem,
No calor seguro do seu aperto, acabarás estrangulada
Bloqueia os frémitos que a tua pele te transmite
Quando por ela ele passeia a sua mão forte, suavemente
Não bebas a ilusão dos seus lábios,
Não te deixes embalar pela sua voz segura e sensual
Não lhe oiças o riso
Não permitas sonhá-lo; não o penses
E sobretudo não te prendas nos seus olhos
Podes perder-te
Resiste ao desejo louco de o querer
Ninguém consegue possuir o etéreo
Ainda assim, ele levar-te-á para o outro lado da razão
E tu iras, pela sua mão, perdida de ti
Ausente da realidade
Areia solta por entre os dedos de uma mão


quinta-feira, 29 de junho de 2017

O círculo quebrado


A inocência termina com o travo da injustiça
Segue-se a percepção da morte
A ideia expande, a visão aclara e intimida
O conceito queima, inquieta, intranquiliza
A morte ganha vida, torna-se palpável.
De repente nasce a paixão
Esta trás consigo o desejo
Tudo se confunde e surge o amor
Ama-se e deseja-se, deseja-se e ama-se,
Deseja-se sem amar e quer-se ter e desejar ainda mais
Irrompe a posse e tudo se agrava
A posse é ciumenta, intolerante, agressiva, desconfiada
É um cavalo sem freios, um touro enraivecido, um tornado.
E o ser humano completa-se
O Diabo dança e Deus rejubila
Subitamente a morte aparece, abraça e estabelece o caminho
O ciclo fecha-se com um amargo sabor de injustiça (a vida soube a pouco)
O ciclo fecha-se, mas não na inocência em que começou
Coloca-se o morto no meio de uma sala
Com rendas e flores e um lenço na cara
Junta-se a família, os amigos e os conhecidos
Juntam-se, também, os que passam por lá
Curiosos por ver quem já não está
Comenta-se o defunto: uma perfeição agora que está morto
Veste-se o preto, o azul e o cinzento
Vestem-se lágrimas e esgares de dor
Passeia-se o dito até ao jardim
Atira-se ao solo e cobre-se por fim.
Fecha-se o ciclo, vamos a outro
Haja mais partos, casamentos e mortos


sábado, 3 de junho de 2017

Íntimos Segredos



Gosto de longos silêncios e de palavras olhadas ; uma paisagem selvagem, desusada, obsoleta.
Gosto de caminhos esquecidos, palmilhados ao som do vento, que me levam a aldeias que desconheço; de noites escuras, de luares cheios e de cheiros de ervas molhadas.
Gosto de marés cheias e vagas enormes, de rochedos pintados de algas verdes, em praias de areia deserta.
Gosto de sentir o sal do mar a secar-me a pele.
Gosto de uma falésia ao despontar do dia e da humidade fria do nevoeiro.
Gosto de apanhar uma pedra e descobrir que tem um fóssil, de lhe dar um nome e levá-lo para casa.
Gosto de olhar à volta e descobrir que só eu estou ali, de subir uma colina e, sentado no topo, observar tudo em redor.
Gosto de me sentar em alpendres de madeira de casas de granito, em tardes de Maio, sentindo o cheiro quente da flor de tília.
Gosto de manipular palavras simples, dançando em pontas de carvão sobre folhas alvas.
Gosto do barulho dos regatos em troços de montanha.
Gosto de portas, portas que se podem fechar ou abrir em função do desejo do momento; gosto delas maciças (e que não se desenhem traços psicológicos à custa desta simples manifestação).
Gosto de livros e do cheiro do papel, do cheiro do café e do seu sabor.
Gosto de coisas simples.
Gosto de gostar sem que se saiba que gosto
E gosto do gosto de gostar de ti.


quarta-feira, 17 de maio de 2017

Sobre a sobreposição de 2 espaços no tempo





O ritmo tem de ser coordenado entre os dois planos, em movimentos fluidos, apressurados que não apressados, gravitando em torno do verbo sentir.
Sugere-se começar com um ritmo de valsa lenta, numa curva ascendente, em que o clímax é antecipado por um rufar de tambores.
A acção transita para movimento aceleradamente descontrolado; os planos colapsam no espaço confinado; a horizontalidade perde o sentido.
O som torna-se abstracto, a paisagem desfocada e a força é puro instinto.
Os espaços colam e descolam para lá da razão.

E, depois de recuperar o fôlego...já se fumava!


quarta-feira, 3 de maio de 2017

Da linha hipnótica da boca


Vejo-te falar e não oiço
Duas linhas carnudas de sangue
desenhadas na maldade da perfeição
Traços de uma sensualidade que me ensurdece
Frágil se torna a luz no teu reflexo
Teus cabelos, ondas revoltas onde meus dedos se afogam
E tu uma praia
Onde as gaivotas esboçam no ar o meu desejo
E a areia a cama onde te quero
Cega é a ausência do teu toque
E negra a distância que nos separa


terça-feira, 2 de maio de 2017

E um belo dia tornas-te analfabeto de ti



Um dia, sem que o saibas, fecharás a penúltima página do teu livro, sem chegar a abrir a última.
Essa não a lerás, não saberás o que lá foi escrito, mas será a mais importante página da tua vida porque é lá que ficará registado o teu legado.
A última página será escrita a várias mãos, em diferentes caligrafias, em formatos emocionais diversos; e será escrita por tempo indeterminado, até que a última memória que de ti houver chegue à penúltima página do seu livro.
Tu, que por tanto tempo, escreveste uma história envolvendo tantos personagens, que sem o saberem, foram por ti ligados numa rede complexa de vivências, não terás a percepção de quando te será escrita a palavra fim.
Quem foste, o que foste para os outros, o que significou a tua vida, só o último dos teus personagens o saberá.
A ironia da situação é que nunca vestirás o fraque para receber o prémio Nobel, por muito bom que venha a revelar-se o teu livro.


segunda-feira, 24 de abril de 2017

Que se lixe a métrica



Vieram-me os olhos ao mundo
Numa golfada de ar
Surpresa em forma de dor
Pranto com sabor a sal
Companhia de vida
Em formato pendular
Vida quase sempre ausente
Hoje vejo o presente
Não vislumbro um futuro
E ao renegar o passado
Em passadas transviadas
Virei costas ao mundo
Tornei-me a sombra do nada

Do insano fingimento



Diz-se que um animal ferido pode enlouquecer da dor. Eu acredito e vou mais longe: um ser humano ferido nos seus sonhos pode perder a razão, pode não querer respirar, pode querer apenas ficar sentado, rodeado de silêncio, fitando algo, para lá do horizonte. Algo que só está lá para ele, que fica lá para ele, até que páre de respirar.
Há feridas que podem causar insanidade, dores que podem deixar cicatrizes, cicatrizes que não fecham.
É perigoso o jogo da paixão segundo as regras do desejo. E tal como esta musica se desenvolve num crescendo, até atingir o climax, assim pode evoluir a dor da ferida não cicatrizada, a dor não fechada, o desejo não atingido, a paixão não cumprida,
É tudo insanidade, só insanidade e lá no fundo, bem na curva do horizonte, a figura acena e sorri.


segunda-feira, 3 de abril de 2017

Brincar às palavras



Eu amo
tu amas
nós amamos
eu amo múltiplos
tu amas diversos
nós amamos multidões
Eu traio
tu trais
Nós não traímos
Somos o casal perfeito
As palavras
As palavras não têm sentimentos
As palavras expressam sentimentos
Os sentimentos
Os sentimentos dificilmente se expressam
Embora possam ser expressos
A imagem
A imagem é mais forte que o sentimento
A imagem é facilmente manipulada
As pessoas
As pessoas são facilmente manipuladas
e manipulam facilmente
As palavras de novo
As palavras que expressam sentimentos podem ser manipuladas
Novamente os sentimentos
Os sentimentos são manipulados e não têm palavras
O som
O som das asas expressam liberdade
Os sons podem ser recriados
Manipular
Manipular é recriar?
Expressar
Expressar sentimentos é manipular
O verbo manipular
Eu manipulo
tu manipulas
A pura diversão
Todos nos divertimos
O fim
e depois morremos

sábado, 25 de março de 2017

Alucinações em www.com ou Realidades em WiFi



Vozes sem rosto
Multidões sem forma
Cortadas por formas geométricas
A preto e branco
Céus de violetas
Em tons caqui
Fumos espessos
Escapam por entre os dedos
E a rua flui até ao seu fim
Ao meio um cruzamento
Ou será uma encruzilhada
Onde mulheres se perdem
Se mostram, se expõem
Um red light district.com
Em formato de bolso
E os homens espumam
(os homens espumam sempre e facilmente)
Os homens agitam-se
Os olhos excitam-se
Em céus de violetas
Com tons de caqui
Conversas estudadas
Frases usadas
Dirigidas, manipuladoras
Conversas pobres
Que acabam em trapos espalhados no chão
E os céus de violetas anunciam tempestade
E há sempre uma nova praia
Uma enseada à espera de ser descoberta
E um porto de abrigo usado, desgastado, devoluto
A cabeça estala, a dor agudiza
A noite vai longa, quase morta
E o copo nunca esteve vazio


Reflexos vidrados


Acordei dorido
Quebrado pelo peso do que sinto
Fatigado desta luta fratricida
Hoje é apenas mais um dia
Uma soma sem significado
Uma subtracção existencial
Hoje o céu é o mesmo de outros dias
E as horas são repetidas
Os sons são ecos
E os ecos imagens que não queria
Não pedi para acordar
Não rezei por mais um dia
Não gritei por justiça
Nem concebo um perdão
Mas anseio por uma paz
Que não consigo expressar
Em simulacros de escrita
Sem ter dormido, acordei
Em contagem decrescente

quarta-feira, 8 de março de 2017

O vinil do amor

Lado A

Sonha.
Sonha um sono infantil, uma aventura sem nexo, mas sonha e no sonho sorri. Foge da realidade, descansa a cabeça na almofada e deseja viver, inconsciente, uma felicidade. E, em sonhos, sorri. Sê feliz, mesmo que seja só a fingir.



LADO B

E gritou, gritou bem alto em silêncio. E chorou uma tempestade de lágrimas desidratadas a dor que, no peito, o quebrava.
Sentiu-se impotente, sentiu-se amputado do seu amor. E desta vez gritou em desespero, um grito horripilante, um uivo de lobo solitário. As chagas da memória abriram e tornaram-se pústulas hediondas.
Das costas, dois fios de sangue, duas asas amassadas; asas de desejo, desejo arrancado pela raiz.
E não quis saber do sol, não sentiu o vento morno, ignorou quem passava; olhos raiados de um frio cortante. Não mais a luz, não mais a cor, apenas o luto derrotado da sua arrogância. E errante se perdeu nas vielas escuras do desnorte.


domingo, 29 de janeiro de 2017

Geração transfronteiriça

Texto deprimente para avançados de vida ou, a porra da vida passou por mim de carrinho


Se tens a minha idade, andaste numa escola primária, usaste um quadro de ardósia, paus de giz branco, sentavas-te num banco de madeira, tampo inclinado. Os teus pais deram-te um estojo com lápis de carvão, esferográfica Bic, borracha, afiadeira. O teus professor obrigava-te a fazer contas de cabeça e tiveste de decorar as dinastias, a divisão administrativa do País (ainda um Império de sonhos tresloucados), o nome das serras, dos rios e mais uma série de coisas “inúteis”, que os jovens de hoje, com um clique, descobrem num minuto na Internet.
Ao fim de alguns anos a penar de lápis e borracha na mão, com um pouco de sorte recebeste uma calculadora. Se foste para a faculdade, começaste a ouvir falar de uns equipamentos muito grandes, chamados computadores, que permitem fazer rotinas de cálculo complexo; antes tens de aprender umas estranhas linguagens, a que chamam linguagem de programação e aprender a furar uns cartões. Os computadores são máquinas enormes, em enormes salas e há longas filas para quem quer programar.
Acabas a faculdade ou o 12º ano e arranjas emprego. Os projectos demoram semanas a fazer, tudo à mão.
Um belo dia o teu chefe dá-te para as mãos um computador de mesa, com uns programas de cálculo, outros de texto, uns programas de desenho e uma coisa que se chama e-mail e lá tens tu de aprender tudo porque os teus jovens colegas, uma geração mais novos, já aprenderam a usar aquilo tudo na escola. Sentes-te deslocado, este não é o mundo em que te formaram e tens de aprender tudo de novo, porque os empregos escasseiam, a concorrência dos mais novos é feroz e eles levam-te vantagem com essas novas tecnologias. Esforças-te por aprender, a tua experiência já não tem qualquer valor; os novos gestores olham para ti como um técnico caro e o mercado de emprego tem gente disponível e a mais baixos custos.
Conforta-te, foste criado numa sociedade que vivia ao ritmo da vida e dos ponteiros do relógio e, de repente, vives numa sociedade de bytes, megabytes e gigabytes.
Aderes aos computadores, deslumbras-te pela Internet e pelos telemóveis, rendes-te completamente às novas tecnologias. Este novo mundo permite-te quase tudo sem teres de sair de casa. De repente descobres que não tens privacidade, expuseste completamente a tua vida.
Pertences a uma geração que viu morrer um conceito social e nascer outro completamente diferente e, podes sentir-te deslocado ou mesmo perdido com os novos valores sociais. Já não vives na tua aldeia, vila ou pequena cidade, és um cidadão global e a dimensão do teu novo mundo é assustadora.
Tens o direito à diferença e à indignação, mas há muito que perdeste essas qualidades e não queres ser visto como um “marginal”. Ensinaram-te que ser diferente pode ter um preço demasiado alto, por isso resignas-te, inconformado contigo. E essa dualidade consome-te, roí-te o amor-próprio e deixa-te amargo.
Descansa, morrerás como qualquer outro e, em pouco tempo, já ninguém se lembrará de ti.
Consola-te, a tua morte é coisa que não terás de programar.



sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Manifesto viperino

"Num povo ignorante a opinião pública representa a sua própria ignorância."Fonte - MáximasAutor - Maricá , Marquês
"O desprezo é a forma mais subtil de vingança."Autor - Gracián y Morales , Baltasar

Se procuras poemas de amor podes parar por aqui. Hoje não há.
Frases bonitas? Talvez nos vizinhos; é provável que tenham feito umas transcrições interessantes doutro alguém que não suas. É o mérito de fazer bem nada fazendo (ver exemplos acima; imaginá-los sem referência e decerto entenderão o figurão que se pode fazer). Os exemplos foram tirados ao acaso, numa minuciosa pesquisa de 42 horas.
Hoje o dia está aziago: não há nuvens, não há frio nem, tampouco, chuva.
Os passarinhos não andam malucos, os cães estão desaluados e o canário da vizinha irrita-me solenemente, ou seja, os canais de televisão estão cada vez mais horrorosos.
Cansam-me as verdades hipócritas, vestidas por medida para a ocasião; cansam-me as espertezas cultas mal escritas, mal alinhavadas e muito pouco paridas.
Apetece-me um prado florido, flores lindíssimas e bem cheirosas para poder pisar à vontade e com toda a convicção.
Irrita-me a canseira de nada fazer, a inércia do movimento aceleradamente retardado e a porta da garagem pendurada pelos gonzos.
Estou farto de políticos, apolíticos, paralíticos da opinião e apócrifos.
Não me apetece ter paciência para ser paciente.
Não me apetecem amores, desamores, amizades, rancores, ciúmes e favores; se vierem acompanhados de uma caixa de chocolate preto belga com cerca de 78% de cacau repensarei a minha opinião. Beijinhos, hoje não por favor; podem sempre mandar por correio registado, não esquecendo o código postal e o nº da porta.
Antitabagistas ao largo, de preferência num barco a naufragar, bem no meio do mar.
Só penso em poltronas, (e por que não matronas) , uma música escolhida por mim-condição obrigatória neste dia- maço de tabaco ao lado e um isqueiro funcional porque, para disfuncional já chego eu.

Que Deus vos abençoe que é a sua obrigação; eu quero mais é portar-me mal!
E se este texto tiver algum erro, que se dane...