segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Da fragilidade de ser

 

Abraça-me com força,

Segura-me, não permitas que caia

E nesse abraço protector

Empresta-me um pouco do teu calor

Porque me sinto vazio

E um pouco de carinho

Pode alentar-me o caminho

Que ainda tenho de percorrer

Olha-me, olha-me nos olhos

Como quem olha alguém

E nesse olhar dá-me a esperança

De voltar a ter um ideal

E, se não for abusar muito,

Peço que me dês a mão

E que a força desse aperto

Me faça sentir um homem novamente

E quando por fim te afastares

Deixa para trás o teu perfume.

Apenas um pouco desse perfume

Para que por mais uns momentos

Nele me possa a embriagar.




Esse Jardim

 

Senta-te e observa bem quieta

Como a tarde cedo anoitece

E a temperatura do ar arrefece

Devagar, ao ritmo do tempo

 

Não fales, escuta o ruido do teu silêncio

Ou como as folhas coloridas se agitam

Ao som da brisa outonal

 

Escolhe um jardim e um banco

Esconde-te à vista de quem passa

Torna-te um elemento da paisagem

Fecha os olhos e sente

 

Sente o tempo a passar,

As horas a contar

(ao ritmo a que só as horam sabem contar)

E deixa-te ficar até a noite cerrar

E o escuro te abraçar

 

Algo está algures a findar

Não temas, é apenas a vida a cumprir-se

E nessa escuridão tardia

Aconchega a tua cabeça

Sossega o teu coração

E deixa-te estar

 

Há um dia por chegar

Há uma noite por ficar




sábado, 17 de setembro de 2022

Se ao menos existisse o tal se

 

Há quem diga que há seres destinados a cruzar-se o número de vidas necessárias para que se cumpra o desígnio que lhes está destinado.

Eu acredito que só se vive uma vez, e cada escolha é única e irrepetível. O que não se partilhar nesta vida, nunca voltará a ser possível.

Felizes dos que acreditam…

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Não sei recriar o passado

Não posso corrigir situações

Posso, sim, sentir como seria

Se recriado fosse o momento

De que hoje me lamento

Tantos anos depois

Há quem fale em destino

No tal fado fadado

Numa força maior

Eu simplesmente acredito

Que há escolhas na vida

Que se fazem uma vez

E não se colocam depois

E é este o mistério,

A graça, a especiaria

Que torna tão especial cada vida

Nunca sabermos como seria

Se em vez de um não saísse um sim,

Ou se o olhar fosse para ti

E não para algo mais além.

Não quero recriar o passado

Tenho comigo as emoções

E as imagens que marcaram

Tudo o mais são ilusões



terça-feira, 13 de setembro de 2022

Cinzento escuro

 

Penso no pouco que me resta

Do tanto em que me dividi

Tão pouco,

tão espalhado

Sombra de um pecado

Sendo pouco sou nada

Nada sendo do que pareço ser

Uma mentira no espelho

Uma solução de continuidade

Algo que não sabe o que é

Não importa se é fragmento

Se o todo não é


Penso no fragmento

Tão pouco, 

tão espelhado

Na mentira que criei

De cada vez em que me dividi

Em algo,

Numa sombra

No nada 

No quanto resta de mim







sexta-feira, 19 de agosto de 2022

 

Não esmoreças,

Não desanimes.

Por pior que as coisas se apresentem, não percas a compostura.

E continua, e vai em frente

Porque a verdade é que tudo tende a piorar

A esperança é um mito

E a vida significa morte

Mas não esmoreças, não desanimes.

Engana-te propositadamente

E diz para ti mesmo: “podia ser pior”

Mesmo não sendo e se for possível ser, será

E tu saberás.

Cabeça erguida,

Olhar em frente,

Não vaciles

E tem fé:

Com sorte a morte virá cedo



quarta-feira, 10 de agosto de 2022

My house

 

Na casa dos meus pais as paredes secaram

Essa foi a minha casa enquanto eu fui dos meus pais

Havia vida no chão de madeira; ripas antigas; algumas rangiam até de noite

Mas as paredes tinham vida

Na casa dos meus pais as tardes eram soalheiras quando não havia tempestades

Os vizinhos eram todos amigos, mesmo os que fingiam

E quase todos fingiam, mas só quando fingiam.

A casa dos meus pais era grande; para mim era imensa.

Tinha muitas divisões e escadas, muitos degraus, vários obstáculos.

Hoje a casa dos meus pais parece-me pequena, embora continue a ter muitas divisões e degraus.

Já não há obstáculos dignos desse nome.

E as paredes, entretanto, secaram mesmo.

Há muito deixou de haver tempestades, mas as ripas de madeira rangem mais.

Há muitos sons na casa praticamente vazia

Eu acho que alguns são ecos doutros tempos.

Em breve a casa que foi dos meus pais e minha e depois só dos meus pais, voltará a ser minha.

Creio que desta vez será só minha, o que pode representar um problema porque as paredes não estão habituadas e eu não sei como reagirão,

As paredes são temperamentais, algumas podem ser mesmo muito.

Mas o que mais temo são os sons que teimam em ficar.



sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Viver é uma felicidade

 

Nasces.

Pela casa é uma alegria contagiante.

Comemora-se o teu nascimento - aplaude-se a tua morte

Nasces, terás um pouco de tudo e muito de algumas coisas

Mas morrerás

O único legado da vida, a única não promessa que se cumprirá,

A única coisa que terás: uma morte

Mas nasces e o mundo é feliz

Estás vivo

Por quanto tempo?

Que interessa se o teu mundo é feliz?

Se fores crédulo ainda acreditarás que a morte é apenas uma passagem

Para uma outra qualquer margem onde, acreditas porque tens de acreditar para manteres alguma sanidade, que serás ainda mais feliz

E o teu mundo sorri

Vives e há um sentido na tua vida, apenas não sabes qual, mas queres acreditar que é algo de maior

E depois morres, mas antes de acontecer, o teu credo abala, os teus medos tomam-te e perguntas-te que sentido teve tudo isso

Sorri, ninguém disse que a vida era fácil

Ela apenas acontece




domingo, 10 de julho de 2022

Um traço

 

Com um traço desenho o limite entre a areia e o mar.

Um traço cada vez mais ténue com o passar dos anos.  Um traço que já foi uma fronteira.

Há nesse traço toda a história de uma vida.

Há toda uma história que envolve vidas. Com um traço desenho limites de vida.

E com esse traço vou à origem, risco sentimentos e sentires.

Um traço

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domingo, 12 de junho de 2022

Em tons de sépia

 

É quase sempre quando te encontras sozinho que ela vem, suave e silenciosamente e se instala.

Apodera-se da tua vontade e controla-te os pensamentos.

És o seu instrumento, um fio condutor entre o passado e o presente, e o passado e o passado mais longínquo.

Leva-te por acontecimentos há muito adormecidos: momentos de felicidade, situações embaraçosas, histórias dolorosas, dores que marcaram, palavras que feriram, palavras que tocaram fundo.

Leva-te a recordar bocas há muto fechadas, sons remotos, porém familiares. Faces que guardas no coração, corações que te fizeram crescer e seres quem és.

Quando ela se instala, sedutora, ficas irremediavelmente perdido; ela é uma droga poderosa que te transporta no tempo, entorpecido. Não resistes; melhor, não tentas resistir, apenas te deixas levar para outras dimensões, caminhos antigos, sentires profundos. Voltas a vielas escuras, húmidas e escorregadias que evitaste lembrar por muitos anos; voltas a sentir sob os pés aquela areia fina e húmida por onde corrias para mergulhar nas ondas do mar, esse mar agreste de águas frias e ondas traiçoeiras cujo cheiro a algas e iodo te marcaram a infância e a juventude. Voltas a sentir a ansiedade e os medos que, em criança, te marcaram fins de tarde (muitas vezes sem qualquer razão de ser). Voltas a ser pequeno e frágil, jovem atrevido e irreverente.

E tudo porque ao longo do tempo procuras cada vez mais estar sozinho, facilitando-lhe a presença, facultando-lhe o domínio, deixando-a possuir-te.



domingo, 5 de junho de 2022

Cinzento profundo

 

Sentes a tristeza possuir-te

Traz com ela uma melancolia que te entorpece

E te deixa levar, fundo, bem lá para o fundo

Sentes a amargura, as imagens doridas

Tudo quanto escondeste bem dentro de ti

E não resistes, não reages. Deixas-te apenas levar

É doce a triste melancolia; embala-te na dor

Pega-te pela mão, pobre criança

Olha-te com os teus grandes olhos tristes

E como te compreendem esses grandes olhos que

De dentro te olham na certeza de que sabes

O quão bela e cativante é a tristeza.

E tu sentes, tu queres

Tu deixas-te ir



terça-feira, 31 de maio de 2022

Silêncios

 

Refugio-me no silêncio da casa desde a tua ausência

A casa mantém o teu cheiro,

Guardou-te a sombra, cuida dela.

O silêncio é o meu cúmplice,

A minha capa protectora,

O manto que me torna invisível

Invisível à tua ausência,

Ausente da tua sombra que tenta perseguir-me pela casa

Essa mesma que mantém o teu cheiro

Estou cativo nesta casa e nem o silêncio onde me refugio

Me protege de ti



domingo, 29 de maio de 2022

Desta minha escuridão em que tanto brilhas

 

A cadeira de verga que almofadaste e colocaste em frente à porta da varanda.

Essa cadeira onde te sentavas ao fim da tarde, naquele período em que o sol nos brinda com um brilho de luz especial, aquele brilho de quem se vai e só volta no dia seguinte.

Esse brilho que se espelhava nos teus olhos quando eu entrava e te viravas de frente para mim.

Era nesse momento que o sol sentia inveja de mim.

Há muito que te foste; a cadeira, essa, continua no mesmo sítio, recordando-me tempos em que eu próprio tive inveja de mim.

Mais ninguém se sentou nela desde esse dia; enquanto me recordar do meu nome ninguém se sentará nessa cadeira de verga por ti almofadada.

Sinto que um dia, quando já eu próprio me tiver “posto” para lá do horizonte da memória, virás como se nada se tivesse passado e te sentarás na cadeira no preciso momento em que o sol te brindar com o seu brilho que, de uma forma muito especial irradiará de teus lindos olhos.

Apenas a lua será testemunha desse desencontro e sei que sentirei uma inveja imensa dessa lua Cheia do teu brilho.

 


sábado, 28 de maio de 2022

666

 

Porque te permites viver a metade do todo que és?

Porque te divides entre a razão e o sentimento

Sabendo que quem perde é o desejo?

Porque te acomodas à estrada que te indicaram

Sabendo que tantas outras há por onde caminhar?

Vejo-te ave de uma só asa;

Saltitas de parapeito em parapeito

Num ensejo imenso de levantar voo e voar

Porque te permites limitar para além do que já te limitam?

Para uns a “segurança” vale mais que a liberdade,

Que o livre arbítrio

Alimentam-se da vã esperança de haver sempre mais um dia,

Mais um dia para mudar, um dia mais onde arriscar

E assim se enganam os sentidos, assim se escraviza a voz da pele

E se caminha seguro pelo caminho comodamente indicado

Na dessegurança de uma vida segura

Até que não haja mais um dia

Nem mais um dia para gastar

E no obituário alguém escreverá: “Era uma excelente pessoa”

Mas perdeu o ensejo de sentir o prazer transcendente

De quem muda de caminho e se atreve a voar.




 

 

 

sábado, 21 de maio de 2022

Sem razão

 

E de repente sentes um misto de desejo e de profunda paz

Durante aquele abraço tão ansiado, demoradamente esperado

Decididamente atrasado.

Mas sabes que aquele pode ser o último

Porque é um abraço clandestino,

Tal como esse é um desejo proibido

Fruto de uma improvável atracção

Mais forte que a razão

E questionas a tua sanidade

E questionas a razoabilidade

E a moralidade

Mas naquele abraço existe apenas o calor dos corpos

O desejo de sentir

A simplicidade do desejo

E a esperança vã que todos os relógios do mundo parem



quarta-feira, 18 de maio de 2022

É isto ser prestimoso?

 Não podes permitir-te ceder ao desejo. Apenas não deixes que os sentidos te controlem.

Pensa-nos como quiseres, mas não deixes que seja em modo de desejo.
O desejo vicia, tolhe a razão e tu gostas de te sentir a controlar os teus actos. Não é que os controles, apenas crês fazê-lo. Não deixes que o desejo,
esse enviesado desejo, te tolha as ideias.
Concentra-te em desejar não desejar que aconteça e não te permitas abandonar a estas mãos.
Já eu anseio que me desejes e que, num momento de obtuso bloqueio te entregues nas minhas mãos e deixes que do teu corpo faça uma tela de sentidos.
Sei que não deves querer, sei que não devo tentar-te,
e, no entanto, desejo-te fortemente e espero que te permitas ceder.
Não o faças, mas se o fizeres, e eu me permitir permitir-te, então não presto.
E eu não presto.



terça-feira, 17 de maio de 2022

Temo isto que sinto

 

Sinto que não te voltarei a ver.

Só que não será como antes,

Quando não sabia que existias.

Antes não te sentia

Agora que te senti, que sei que existes

Agora que te respiro

Sinto que não te voltarei a ver

E temo que o meu sentir seja acertado

E eu que detesto estar errado,

Logo agora quero errar

E quero acreditar, mas temo, que te continuarei a sentir

Mesmo que à distância da impossibilidade

Só que sinto não ser possível

E temo estar errado

E sei que não te voltarei a ver

Nem a respirar

Nem a olhar, apenas por olhar,

Mesmo não te vendo, mas sabendo

Que lá estarás se abrir os olhos

E te quiser olhar

Hoje não me apetece pensar…

 

domingo, 15 de maio de 2022

Até quando?

 

Aconteceu por acaso, como acontecem as coisas que,
por acaso, não são programadas.
E cresceu; cresceu na distância e na proximididade.
Cresceu para lá das fronteiras do país, para lá de paisagens de outras terras,
Sob o testemunho de noites estreladas indescritíveis.
Foi partilha, sintonia, atracção, apoio.
Foi intenso
Foi desejo e loucura, sendo uma história de duas pessoas improváveis.
E um belo dia “desaconteceu”, tão de repente como começou
Tão silenciosamente quanto o distanciamento gerado, com um desagradável gosto a tanta coisa por dizer
Deixou memórias, deixou sabores quentes e doces, dedos que não contam,
olhos que não descrevem.
Deixou um vazio que o futuro jamais preencheu.
(Muitas vezes o futuro acontece tal como não estava previsto).
Eles ainda se sentem na distância; a vida continua para cada um deles
E cada um deles evoluiu noutras vivências, noutros lugares, com outras presenças.
Acredito que hajam incontáveis futuros, mas não creio que esteja previsto um que seja comum aqueles dois.
Ainda assim aposto que o intenso e doce sabor dos lábios permaneça presente até ao fim.
E que de todas as coisas que ficaram por dizer, as que realmente contam, sejam sentidas por ambos.



segunda-feira, 9 de maio de 2022

As formas da dor

 

Sinto esta pressão no peito

Uma força compressiva

Uma sensação opressiva

Uma espécie de desassossego

Sinto que algo falta aqui

Não foste tu, nem foi por ti

Era para ser um afago,

Um carinho em forma de carícia

Uma atenção sentida

Uma expressão de medo

(porque a perda é medrosa)

Mas nada aconteceu

Porque não estavas

E se não estavas não havias

E se não havias que poderia eu sentir

Senão uma pressão, uma força compressiva

Um desassossego, uma forma de medo,

Uma carência de atenção,

Sem afagos, nem emoção

Não, não foste tu

Foi a imagem de ti

Que no espelho não vi

Mas idealizei

E nela acreditei

E assim se forma a dor

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Sendo um idiota

 

Nunca te falei dos segredos do jasmim

Nunca te embalei na ternura com que te olho

Quanto tu não vês

Sinto cá dentro que continuarei mudo

No momento de te dizer

O quanto és jasmim

Ou mesmo tília, em pleno maio

Eu que olho todos nos olhos

Só nos teus os meus cegam

Tal como a voz se apaga

Sem te conseguir dizer

Que és a onda perfeita

A aragem mais suave

O perfume que inebria

Que me és o que começa e acaba

E a razão para haver um horizonte

Para onde caminho

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Nessa chuva tardia

Veio a chuva, 

numa verticalidade tardia

duma forma miudinha

Cheirei-te a proximidade 

por sobre o cheiro da terra molhada

A chuva, essa fina chuva que tarde veio

vertical

Fez-te voltar,

não sei porquê

Temo e olho-te 

para além de ti

só esse manto fino, molhado

E eu perdido

frágil, com medo

de me voltar a perder

irremediavelmente

em ti

E chove 

e eu tropeço nesta angústia

de me entregar (outra vez)

e, de novo, te ver depois partir

E eu não quero voltar a chover




terça-feira, 29 de março de 2022

Vai

 Vai tu à frente; vai e espera porque eu prometo-te que, quando a altura chegar, irei lá ter para voltarmos a percorrer todos os lugares que conheciamos e onde rimos.

Já que vais primeiro aproveita para disfrutar da novidade, toma os teus cafés com açucar, sempre acompanhados de um copo de água e de um SG filtro.
E descansa; sei que nada disseste mas ultimamente tem sido tão duro para ti, tão pesado o fardo da dor silenciosa, que mereces um descanso prolongado.
Vai, vai tu à frente.
Vai e em breve lá estarei também com o meu cigarro de tabaco negro, com o meu sorriso atrevido acompanhando as tuas gargalhadas. Há quanto tempo não te oiço uma.
Vai, eu guardo-te a dor.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A modos que sim, mas talvez não

 

Hoje fiz que vi, mas não vi

Preferi ouvir e sentir

Aleguei sofrer de síndrome antissocial

Disse que era um problema cultural

E fiquei de parte a contemplar

As ideias que não vinham,

Acabadas de chegar

Hoje recusei ousar,

Tive medo de arriscar

E fiquei de lado a observar

O suave movimento do ar

Hoje atrasei o relógio adiantado

Peguei num copo amassado

E com ele na mão menti,

De um modo descarado

E senti-me mais humano, mesmo ousado

E pensei para comigo,

Num tom de voz mental,

Hoje foi um bom dia

Nada fiz de bom

Nada fiz de mal

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Como se nada fosse

 


Não sei se era da forma das dunas
Ou do cheiro sonoro do mar
Tardiamente sentados
Quando todos já tinham abandonado a praia
E as gaivotas conquistavam o areal
A verdade é que o tempo adormecia
A luz ficava suspensa
E conversávamos com os olhos até o sol se deitar
Lá ao fundo, lá bem longe,
onde a esperança se chamava futuro.

terça-feira, 13 de julho de 2021

O Pacto

 

Foi só mais um sorriso

No acto de reviver aquela árvore

Velha árvore, já velha quando eu, criança,

Me escondia do sol sob a sua copa.

É só mais um sorriso

Por saber que continuarás

Quando eu, cansado, sentir que devo ir

Sei que correrei na tua seiva

Enquanto a tua seiva te percorrer

E depois já não sei, talvez mineral, talvez pura energia

Quem sabe, quem quer saber

Se o que conta é o que foi?

Fazemos um pacto:

Trocamos recordações para sempre

E para sempre viveremos enquanto nos recordarmos

Eu criança, tu frondosa

Embalando-me nesse perfume de tília

Sussurrando ao vento

coisas que só as árvores e os ventos conhecem

Foi só mais um sorriso,

Agora que cumpro a minha parte.




terça-feira, 9 de março de 2021

Há estranhas coisas a desacontecer

 Ontem podia ter chovido

As flores estavam murchas de tanta sola
Sentei-me no muro sobre a vila e contei minutos pelos dedos
Lá em baixo as cabeças passavam
umas vezes tinham corpos outras não
Cabiam na largura do meu polegar
Mas este estava entretido a contar
Vi uma nuvem e um gato
Já nem sei por que ordem
E não deixei de contar minutos pelos dedos
O rio acompanhou-me todo o tempo
Faltavam ali tambores, faltavam ali tremores
E nem a sombra da igreja,
Nem o muro do cemitério
Nem a chuva que não veio embora pudesse ter vindo
Nem as cabeças lá em baixo, umas com corpos, outras não
Cabiam na largura do meu polegar
Então deixei de contar os minutos pelos dedos
(já não fazia sentido)
E reparei que não havia uma ponte naquele troço do rio
Nem poderia haver
Este rio só tem uma margem



quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

2021

 

Não sei que te diga

Pois já não sei beijar

No beijo punha todo o meu discurso

Todas as emoções e sentimentos

Que te queria transmitir

Se me tiraram o beijo

Como poderás saber que ainda te gosto

Que ainda me importo

Que és o centro da minha vida?

Tento que me leias nos olhos

Essa enciclopédia de amor que te escrevi em pensamento

Mas os olhos não se colam como os lábios,

Não transmitem o seu calor emotivo

Não provocam a descarga de adrenalina necessária

Para que a mensagem passe.

Os olhos completavam os lábios na perfeição

Mas agora estão órfãos

Por isso não sei que te diga

Até que me libertem os lábios

Até que a comunicação entre nós se restabeleça

Até que tudo o que de bom era volte a ser

 

E por isso o que mais desejo para 2021 é que, de forma segura, caiam as máscaras que tapam as bocas, se libertem as mãos que acariciam, se desprendam os braços que abraçam e se soltem os beijos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

2020

2020 



 E de repente os olhos ganharam outra importância, passaram a ser a parte visível da face e do estado de espírito de cada um. São a expressão do sorriso, da tristeza, da surpresa. 
Neles habita a esperança e a desilusão, o pedido e a gratidão, o medo e a excitação. 
E de repente o mundo aparece vendado, como se um manto de nevoeiro se tivesse instalado em cada um. As bocas são proibidas em público. 
E os afectos, como se expressam neste mundo vendado? 
 Por olhares... são olhares…

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Carnaval ou a realidade contida


De branco e preto uma máscara criei,
com laivos de silêncio a coloquei,
e com grande exagero a retoquei.
No canto direito do olho esquerdo uma lágrima desenhei,
e nela toda a minha nostalgia derramei.
De máscara posta pela rua passeei
e por entre as outras máscaras me misturei.
De todas as que vi a que mais me tocou,
era a minha, porque despida de mim, nua de som,
era a mais real que alguém inventou.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Outono



Por vezes ainda recordo o som da chuva
nas folhas amarelecidas
E o cheiro da terra molhada ao nosso redor
Agora sei que era curto
o longo passeio pelo parque
O tempo arrefecia
mas era quente a tua mão
Gosto de recordar pelos dois
esses momentos perdidos
agora que estás ao abrigo do tempo
E chove-me de saudade o Outono

domingo, 9 de agosto de 2020

Relato da morte de um vitral

Recentemente revisitei o banco de pedra sob a tília
onde me sentava nas tardes de verão,
quando o sol a pique queimava o que mexia.
Ali me sentava com o meu avô materno, e
à sombra dessa árvore centenária, falávamos,
ou ele contava-me estórias da sua juventude
e daquele lugar perdido no alto da serra,
mesmo em frente a outra serra igualmente perdida.
O cheiro da tília e o fresco que a sombra proporcionava
associados ao timbre da voz do meu avô,
embalavam-me. Era um cenário hipnótico
Era como se aquele velho e aquela centenária árvore
tivessem o poder de deixar o tempo suspenso
Quando agora voltei o banco já não estava,
A velha árvore também não
O calor, esse mantinha-se
Sentei-me no muro de pedra mesmo por detrás do local
E fiquei em silêncio, à espera.
Ao fim de algum tempo apareceu o banco
E logo de seguida, mas muito discretamente, a árvore.
E finalmente, dobrando a esquina da velha casa dos meus primos,
mesmo por baixo do beiral onde a gata malhada
se espreguiça ao sol, um chapéu preto de aba larga,
um velho vestido de cinzento escuro
e um menino
Vinham os 2 concentradíssimos à conversa
Passaram por mim sem me ver,
Sentaram-se, de costas para mim, no banco
e ficaram os dois à conversa
Não se aperceberam do nó que me apertou a garganta
E do grão de poeira que me irritou os olhos
do sol abrasador e do cheiro tranquilo da tília
Nem mesmo notaram que, à sua volta,
Nem uma sombra se deitava no chão
sob esse sol impiedoso sol de verão
Com um sorriso melancólico levantei-me,
Despedi-me dos dois com a dolorosa certeza
de não mais os voltar a encontrar
Virei costas e desci a rua empedrada para a vila