Tenho um amigo de
estimação. Não é um amigo convencional, é uma daquelas pessoas que partilham
comigo o gosto pela tranquilidade de um pequeno espaço verde na cidade; um
desses lugares onde se avista a desembocadura do rio, rodeado de um sossego que
permite ouvir os pensamentos. Recorro a esse local sempre que me farto de
pessoas; eu farto-me com frequência de pessoas.
Esse tal amigo tem esses
dois pontos em comum comigo: farta-se de pessoas e gosta de locais tranquilos
onde se possa ouvir o som mudo do pensamento. Apesar da diferença de gerações,
acabámos por quebrar o bendito silêncio do local ao fim de inúmeros encontros e
apenas por causa de um vício socialmente malquisto que partilhamos: o tabaco.
Os fumadores são os proscritos do seculo XXI, são perseguidos, mal vistos e
nada recomendáveis. Por isso, restringem-lhes cada vez mais a liberdade de
fumar; coisas de Santa Inquisição transpostas para os dias de hoje.
O meu amigo é de um
cinismo contagiante e, como todo o solitário, adora falar da sua vida, das
experiências vividas, do que sente, do seu pequeno mundo.
Recentemente o tema foi o
amor e ele, como quase sempre, opinou fundamentando-se na sua vivência do tema.
Retive o essencial colocando entre aspas as suas palavras, para não prevaricar
nos direitos de autor.
Em determinado momento da
sua vida conheceu uma senhora por quem se apaixonou e a coisa foi séria:
“… dizia amar-me, como
quem aprendeu lendo um tratado sobre a matéria. Dizia-o como quem come tremoços
entre dois tragos de cerveja. De uma certeza absoluta emoldurada nuns olhos
credíveis. Inevitavelmente, a “confusão de espírito” acabou por revelar-se em
contradições convulsivas. Digo propositadamente inevitavelmente e não
fatalmente. Primeiro porque era realmente inevitável, tanto quanto conhecer a
verdade da mentira. Depois porque (e aí retive-lhe da face um sorriso
ironicamente maroto), na sequência tive a sorte de encontrar quem, não
utilizando a palavra amor, me tratou sempre como realmente se trata quem se
ama. Por algum tempo detestei a palavra amor, mais tarde acabei por lhe dar o
devido apreço”.
Solidário com as palavras
desse velho amigo de ocasião, tenho para mim que não se aprende a amar, não se
usa amar porque se quer ou porque soa bem ou mesmo, porque convém em
determinado momento.
Sente-se; apenas isso:
sente-se. Se me perguntarem qual a definição de amor direi, sem qualquer veia
poética: Amar é algo que se sente de uma forma muito especial e inconfundível
(triste definição, eu sei).
As pessoas usam a palavra
de forma fácil, por vezes convencidas de que amam, outras, de forma leviana,
enganadora, mas nem todos passaram alguma vez por esse agradável desconforto
que é sentir amor por outra pessoa.
Obviamente não me refiro
ao amor familiar, mas aquele sentimento tão peculiar nutrido por alguém por
quem não se tem qualquer laço de sangue. Não sei definir o amor porque não
gostei de lhe conjugar o verbo. Comigo, foi uma experiência tão agradável e, ao
mesmo tempo tão desconfortável, que julgo ter criado uma defesa psicológica que
me alerta sempre que há indícios do sintoma. Admito mesmo que é dos poucos
verbos onde mais erro a conjugação. Enrola-se-me a língua, paralisa-se-me o
maxilar.
Sei que o amor deslumbra,
é egoísta, cega, é ingrato, possessivo. Sei que é difícil de cultivar e manter.
Também sei que dá uma ressaca intemporal; deixa cicatrizes que se fazem sentir
sempre que têm oportunidade. É um caminho de sentido único, acelerado e,
normalmente, apontado a uma parede de betão.
E, no entanto, ninguém
está imune a ele.
Mas o verdadeiro, aquele
que de facto é sentido e não o que se cospe na cara de outro porque fica bem,
porque convém, porque, acima de tudo, é fácil de dizer, embora mais tarde venha
a ter consequências devastadoras.
Confesso que continuo a
sentir uma espécie de alergia à palavra.
Bendita paralisia facial.
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