domingo, 19 de outubro de 2025

L' amour

 

Tenho um amigo de estimação. Não é um amigo convencional, é uma daquelas pessoas que partilham comigo o gosto pela tranquilidade de um pequeno espaço verde na cidade; um desses lugares onde se avista a desembocadura do rio, rodeado de um sossego que permite ouvir os pensamentos. Recorro a esse local sempre que me farto de pessoas; eu farto-me com frequência de pessoas.

Esse tal amigo tem esses dois pontos em comum comigo: farta-se de pessoas e gosta de locais tranquilos onde se possa ouvir o som mudo do pensamento. Apesar da diferença de gerações, acabámos por quebrar o bendito silêncio do local ao fim de inúmeros encontros e apenas por causa de um vício socialmente malquisto que partilhamos: o tabaco. Os fumadores são os proscritos do seculo XXI, são perseguidos, mal vistos e nada recomendáveis. Por isso, restringem-lhes cada vez mais a liberdade de fumar; coisas de Santa Inquisição transpostas para os dias de hoje.

O meu amigo é de um cinismo contagiante e, como todo o solitário, adora falar da sua vida, das experiências vividas, do que sente, do seu pequeno mundo.

Recentemente o tema foi o amor e ele, como quase sempre, opinou fundamentando-se na sua vivência do tema. Retive o essencial colocando entre aspas as suas palavras, para não prevaricar nos direitos de autor.

Em determinado momento da sua vida conheceu uma senhora por quem se apaixonou e a coisa foi séria:

“… dizia amar-me, como quem aprendeu lendo um tratado sobre a matéria. Dizia-o como quem come tremoços entre dois tragos de cerveja. De uma certeza absoluta emoldurada nuns olhos credíveis. Inevitavelmente, a “confusão de espírito” acabou por revelar-se em contradições convulsivas. Digo propositadamente inevitavelmente e não fatalmente. Primeiro porque era realmente inevitável, tanto quanto conhecer a verdade da mentira. Depois porque (e aí retive-lhe da face um sorriso ironicamente maroto), na sequência tive a sorte de encontrar quem, não utilizando a palavra amor, me tratou sempre como realmente se trata quem se ama. Por algum tempo detestei a palavra amor, mais tarde acabei por lhe dar o devido apreço”.

Solidário com as palavras desse velho amigo de ocasião, tenho para mim que não se aprende a amar, não se usa amar porque se quer ou porque soa bem ou mesmo, porque convém em determinado momento.

Sente-se; apenas isso: sente-se. Se me perguntarem qual a definição de amor direi, sem qualquer veia poética: Amar é algo que se sente de uma forma muito especial e inconfundível (triste definição, eu sei).

As pessoas usam a palavra de forma fácil, por vezes convencidas de que amam, outras, de forma leviana, enganadora, mas nem todos passaram alguma vez por esse agradável desconforto que é sentir amor por outra pessoa.

Obviamente não me refiro ao amor familiar, mas aquele sentimento tão peculiar nutrido por alguém por quem não se tem qualquer laço de sangue. Não sei definir o amor porque não gostei de lhe conjugar o verbo. Comigo, foi uma experiência tão agradável e, ao mesmo tempo tão desconfortável, que julgo ter criado uma defesa psicológica que me alerta sempre que há indícios do sintoma. Admito mesmo que é dos poucos verbos onde mais erro a conjugação. Enrola-se-me a língua, paralisa-se-me o maxilar.

Sei que o amor deslumbra, é egoísta, cega, é ingrato, possessivo. Sei que é difícil de cultivar e manter. Também sei que dá uma ressaca intemporal; deixa cicatrizes que se fazem sentir sempre que têm oportunidade. É um caminho de sentido único, acelerado e, normalmente, apontado a uma parede de betão.

E, no entanto, ninguém está imune a ele.

Mas o verdadeiro, aquele que de facto é sentido e não o que se cospe na cara de outro porque fica bem, porque convém, porque, acima de tudo, é fácil de dizer, embora mais tarde venha a ter consequências devastadoras.

Confesso que continuo a sentir uma espécie de alergia à palavra.

Bendita paralisia facial.






 

sábado, 18 de outubro de 2025

O Grito

 

Desata-se o nó da intolerância

Acentua-se a irritabilidade ferida

Não há paciência sadia

Apenas o desejo maior

De que morra a hipocrisia

Quero uma insanidade por medida

E que venha um terramoto

Que destrua as emoções

Que o desejo esmoreça

Que o amor adoeça

E a tentação adormeça

E que tudo apodreça

Quero berrar que não, não quero

Não me apetece, não se me cola

Exijo um silêncio obrigatório

E uma solidão permitida

Decretada, respeitada e sentida

Que haja multidões, mas mudas

E nem que a morte tudo arrase

Em torno do que de mim resta

Quero uma paz que me impeça

Esta loucura tardia




terça-feira, 7 de outubro de 2025

Déjà vu



Era certamente a hora ideal para um desentendimento, mas não aconteceu. Não ocorreu nenhum eclipse, nem um furacão; na verdade nenhuma catástrofe natural aconteceu.

Eles cruzaram-se, olharam-se, decerto que se cheiraram porque, independentemente de tudo, o instinto primitivo ainda prevalece sobre a razão e o cheiro é um dos maiores estímulos da atracção, mas não se falaram.

Os olhares, magoados de ambos acertaram no outro como se fossem punhos cerrados viajando pelo ar em fúria, mas nada disseram.

E passaram um pelo outro, como se nada existisse, como se nada fosse, como se agora tivesse sido antes.

E assim também se descreve o desejo!




segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Negras asas feridas

 



Suave chega a dor,

esteve ausente

vem tardia

Num crescendo vem a dor,

e com ela morre o dia

Cresce dor crescente,

vem suave, vem tardia

Cresce dor, enlouquece,

nasce a noite fugidia

Depressa se instala a dor,

amarga dor

que a noite se faz tardia

Arde a dor intensamente,

docemente incontida

Brota dos olhos quebrados,

tão forte, tão sentida

E logo se mata a noite

num crescendo rumo ao dia,

na tortura branda e doce

dessa louca dor tardia

Sobrevive a essa dor,

aguenta só mais um dia

Até que ela retorne e te tome

tão suave quanto tardia



quarta-feira, 11 de junho de 2025

Do lamento

 

O quanto eu lamento

Não, não foi pelas vezes passeadas de mãos entrelaçadas,

Nem pelas idiotices que, do riso, acabavam num longo beijo

Não foi pelos dias de sol gastos a apreciar, deleitados, os mútuos olhos

Também não foi pelas vezes que se usou a palavra: amo-te

Decerto não foi pelas carícias, que não faltaram, nem pelos abraços prolongados

O que eu lamento foram os silêncios não partilhados

As dores da incerteza,

O egoísmo da posse

Quando já tudo se havia perdido.

E o lamento torna-se abominação

Quando a palavra se revela, repetidamente, oca

Desprovida de sentido e usada em desespero.

Desespero,

É reter a mágoa que se avoluma, que queima, que teima em não morrer.

E assim lamento,

lamento o desespero de quem usa a dita palavra, num contexto egoísta,

Num remate inconsciente de não perder a posse do que já havia perdido.

E retenho a mágoa.



quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O ténue fio da vida

(texto escrito durante o período do confinamento pandémico)

______________________________________

Agora sei que as gotas de chuva têm um compasso acertado e concertado sobrepondo-se a todos os outros sons.

Nestes tempos certamente incertos, os sons que eram habitualmente menos ouvidos tornaram-se certamente mais escutados.
Ao fim do dia sento-me no sofá, em frente à janela vendo a chuva cair no seu compasso vaidoso, ruidoso mas calmante, contrariando estes tempos tão desconcertantes, fazendo um compasso nas incertezas que habitualmente me inundam o pensamento. Penso nos que me preocupam e nos que não resistiram e apenas suspiro.
É tão fino e frágil o fio que nos prende à vida!