sábado, 7 de março de 2015

Alma negra

Senti-te chegar silenciosa.
Uns indícios, discretos avisos, mas o suficiente para sentir que já me havias escolhido.
Sempre soube que virias, apenas não tinha data definida da tua chegada e não esperava que fosse tão discretamente.
Devo confessar que imaginava sentir-te chegar num frio dia de Inverno, sem chuva, apenas frio, apenas cinzento.
Contigo tudo é mistério e agora que sei que estás ao meu lado, a dúvida é por quanto tempo dado que não duvido que irás ficar comigo até teres cumprido a tua missão.
Já muito sobre ti escrevi, por vezes ansiando a tua vinda, mas a verdade é que, agora sei, nunca estamos verdadeiramente preparados para sentir o teu sopro sobre os ombros, a tua sombra sobre a nossa cabeça, o teu bafo ao nosso ouvido.
Chegaste, terei de me habituar à ideia de te partilhar por todo o lado, por todo o tempo. Agora o tempo tem outro significado, ganhou um novo peso, outra dimensão.
E eu passei a ter duas sombras.
Agora sinto ser importante catalogar as memórias, seleccionar as que de facto são importantes e livrar-me das restantes.
Quero reservar espaço para o que ainda falta armazenar e guardar, para usar até à exaustão, todas as boas experiências que vivi.
Quero aproveitar a tua companhia da melhor maneira: reler os livros que mais me marcaram, recordar as músicas de que mais gostei e voltar aos meus locais de culto.
Não me posso esquecer de voltar a passar uma tarde de Maio sentado naquele banco de granito, por baixo da centenária tília. Tem de ser em Maio para lhe sentir o aroma e colher as flores.
Se me permitires um desejo, é aí que eu quero despedir-me de ti, ao fim da tarde, quando o sol se começar a esconder por detrás da serra e o cheiro da terra se misturar com o intenso aroma da tília.
Só tens de ficar comigo até um qualquer Maio e eu prometo levar-te lá.
Senti-te chegar, silenciosa, discreta, envolvente, uma leve alteração na brisa, tal como sempre acontece quando o Verão se despede e o Outono se instala.