Suspirou profundamente, sentado
naquele banco de jardim, banco de momentos silenciosos.
Abriu os olhos, olhos espelhados de
noites mal dormidas, noites pressentidas.
Os cães passeiam no relvado, chorando
em troncos de árvore, num ritual ancestral. Acredito que procurem a árvore original,
aquela onde o Adão dos cães se aliviou pela primeira vez. Legados caninos que
escapam à sensibilidade distraída dos donos.
Os melros banqueteiam-se por entre
saltos acrobáticos; a chuva da véspera animou os vermes da terra e estes
animaram a passarada.
Mesmo em frente, um jovem casal vive o
momento calmo da tarde; certamente ainda não tiveram a primeira prova de dor.
As dores atacam quando menos se espera, de forma cruel, intempestiva. E tudo
depende da resistência, da indolência, da sensibilidade para ultrapassar,
mascarar, ignorar ou conviver com elas.
Já não se recorda da sua primeira dor;
as primeiras dores não são como os primeiros beijos; por serem tão fortes, tão
intensas, o consciente ordena ao inconsciente que se livre dessas memórias em
DHL.
O primeiro beijo…ah, o primeiro beijo
é outra coisa; é sabor a morango, em travo de cetim; é ardor na face e olhares
por cima do ombro da companheira, com receio de que alguém esteja a olhar. É
intenso, é inocente, flui da boca como azeite. O primeiro beijo é imediatamente
emoldurado na memória, em tons de vermelho vivo.
Sorriu perante a recordação e
imediatamente fechou a expressão em memória da última dor.
Os cães passeiam, os melros comem em
saltos de ballet, os namorados excitam-se e sangram carícias e o homem puxa o
chapéu para os olhos, desce o queixo para o peito e suspira a emoção.