terça-feira, 3 de março de 2020

Fragmentos de jardim


Suspirou profundamente, sentado naquele banco de jardim, banco de momentos silenciosos.
Abriu os olhos, olhos espelhados de noites mal dormidas, noites pressentidas.
Os cães passeiam no relvado, chorando em troncos de árvore, num ritual ancestral. Acredito que procurem a árvore original, aquela onde o Adão dos cães se aliviou pela primeira vez. Legados caninos que escapam à sensibilidade distraída dos donos.
Os melros banqueteiam-se por entre saltos acrobáticos; a chuva da véspera animou os vermes da terra e estes animaram a passarada.
Mesmo em frente, um jovem casal vive o momento calmo da tarde; certamente ainda não tiveram a primeira prova de dor. As dores atacam quando menos se espera, de forma cruel, intempestiva. E tudo depende da resistência, da indolência, da sensibilidade para ultrapassar, mascarar, ignorar ou conviver com elas.
Já não se recorda da sua primeira dor; as primeiras dores não são como os primeiros beijos; por serem tão fortes, tão intensas, o consciente ordena ao inconsciente que se livre dessas memórias em DHL.
O primeiro beijo…ah, o primeiro beijo é outra coisa; é sabor a morango, em travo de cetim; é ardor na face e olhares por cima do ombro da companheira, com receio de que alguém esteja a olhar. É intenso, é inocente, flui da boca como azeite. O primeiro beijo é imediatamente emoldurado na memória, em tons de vermelho vivo.
Sorriu perante a recordação e imediatamente fechou a expressão em memória da última dor.

Os cães passeiam, os melros comem em saltos de ballet, os namorados excitam-se e sangram carícias e o homem puxa o chapéu para os olhos, desce o queixo para o peito e suspira a emoção. 

Serão as memórias fragmentos de sentimentos? Dores e sorrisos em latas mentais de conserva



Chuva em pétalas doridas



Chuva. 
Som cadenciado, compassado, como militares desfilando muito ao longe.
E de longe se aproxima, vindo de cima e de lado, ser alado.
Chuva, chuva fina, peregrina, cadente, por vezes urgente, outras, persistente.
Fria cai em fiadas, dias de noites amargas, ideias peregrinas, pouco sadias, enlutadas por dores veladas, dores de falta, mascaradas por sorrisos de nada.
Chuva, doida chuva que não poisa, não tem assento, tal como o vento.
Chuva que por vezes acalma, em melodia recortada, filigrana, ouro sacana que não me sacia a alma, essa esponja que retém o que não deve e me não salva, das noites perdidas de chuva, dessa chuva que cheira a malva, memórias de infância e de novo a calma.
Húmida névoa que chora e sobre mim se demora, presença constante, pranto delirante que pede às mãos que me rasguem deste céu ou no ar as erga, olhos no chão, consciência plena da pequenez que me fez.
Chuva, densa chuva, nevoeiro, mau-olhado, formigueiro, que me ecoa aos ouvidos, vindo de dentro, tolhe os sentidos.
Chuva plena que não termina. Não reajo, não resisto, deixo-me ir pelos riachos, já sem tino, desatino, e desaguo na loucura deste som de violino.
Já não sinto, não me consinto, sinto a chuva, não me sinto.