segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Pedaços de mim




Cala-se a voz no silêncio; do sonho
desperto de ti. Ensandecido
te procuro e não alcanço. Esquecido
torno a dormir. Medonho
é o desejo de te sentir
Tremenda a vontade de fugir
E nesta contradição pendular
balanço entre não querer e alcançar
Maldigo a hora em que senti
Quão gostoso é gostar de ti






Teia de Luzes ou Efeito Psicotrópico



Não sei se é do efeito da luz na vidraça, do aroma da erva molhada ou do sussurro do vento no espanta espíritos. Talvez seja apenas uma calma induzida pelos fármacos ou a ilusão do tempo suspenso.
Sinto um sossego incomum, indolor e inebriante.
A aranha continua impávida a tecer a sua teia no bordo do vaso do jasmim.
Um jovem casal passa na rua. Na sua discussão cortam o fio que suspende o tempo interior.
Ele, agressivamente, questiona-a. Ela hesita.
Apetece-me interceder por ela, de tão óbvia e merecida a resposta, no entanto prefiro remendar o fio e voltar a suspender o tempo.
Sentado no sofá imagino um retrato, dessa outra que me entorpece, pendurado na parede branca, mesmo em frente. Pequeno, desenhado a carvão, apanhando-lhe as particularidades tão peculiares do rosto.
Ficava mesmo bem o retrato dela na parede branca, mesmo em frente do sofá.
Lamentavelmente, não quero dispor do tempo suspenso para a desenhar.
Os raios de sol perdem terreno no soalho, ou talvez seja apenas o efeito da luz na vidraça.
A aranha continua a sua interminável dança rendilhada no vaso e eu suspendo as pálpebras no fio da memória.






sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Equinócio



São os traços mutáveis da paisagem
E o comportamento dos animais
Em mim sinto a mudança
Os cinzentos iniciaram o retorno
Cruzaram-se com as aves migratórias
As videiras estão em fim de prazo
Os doces figos despedem-se
A noite ganha avanço ao dia
E o vento trás as primeiras chuvas
É tempo de interiorizar
É a estação da nostalgia a chegar
É mais ou menos um Outono?
Pressinto o menos a ganhar
O fim ganha sempre vantagem no início
E novas aves chegarão com o solstício de Dezembro




Acredito que o equinócio se dissolva no solstício

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Moldando em cera



Desta vez olha de frente e sorri.
Sorri uma lágrima quente, uma gota sentida,
a expressão de um sentimento salgado.

Desta vez olha de lado
faz o teu olhar enviesado.
Sorri um sorriso distorcido
e de novo roda a cabeça
e de frente afoga a diferença

Mas sorri...


sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A arte do silêncio



Gradualmente as respirações abrandaram
Os corpos ainda luziam da transpiração
Ela enconchou-se nele e, por cima do ombro, lançou-lhe um sorriso comprometido
Ele retribuiu com o olhar brilhante de cansaço
Afagou-lhe os cabelos
Beijou-lhe a nuca
E enlaçou-a
Numa nova dança

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A suavidade densa da silhueta perdida


A música tocava suave, em volume sussurrado, na parte instrumental que antecede a voz suplicante.
Não recordava quantas vezes a ouvira. Provavelmente, tantas quantas a melancolia lhe enchera os olhos de um vazio baço, virado para as memórias.
As suas memórias eram como uma mala de viagem estampada de autocolantes com os nomes das cidades, tão em voga nos anos 60 e 70. Memórias excessivas, memórias de excessos. Acendeu mais um cigarro, no borrão do anterior; era escusado gastar pedra de isqueiro, já bastava consumir os pulmões.
Gostaria que as memórias fossem como a cinza do cigarro: frágeis e leves. No entanto sabia –as densas, persistentes, incómodas.
Uma vez mais recordou-lhe a face e amaldiçoou a memória. O fumo escapava-se por entre os dedos, o fumo tinha a forma dela. Sempre que queimava a envenenada esperança de a voltar a encontrar, o fumo brincava maldosamente com ele formando a silhueta dela antes de desaparecer no ar.
Entrou a voz exactamente quando era suposto entrar, logo após aquele solo de viola que tanto o arrepiava. E a voz suplicava e as memórias ardiam-lhe os olhos e o fumo empurrava-as para os seus olhos doridos, batidos, cansados da imagem repetida, cada vez mais viva, em carne viva. E o tom suplicante erguia-se acima da bateria e a água escorria dessas janelas vazias, lenta, num movimento não linear.
O clímax musical, o soluço final e a imagem que não conseguia banir e a cabeça a latejar e o cigarro a acabar e a noite mais cerrada e infindável.
A voz calou-se no mesmo tom sussurrante em que começara.
Porque é que as memórias espinhosas não são como as músicas, interrogou-se ele? Porque é que não se podiam simplesmente calar?
Instalou-se o vazio no vazio da esperança. Achou por bem não passar de novo aquela música, acendeu novo cigarro e desejou ser vencido rapidamente pelo cansaço.
Em vão…
E, à medida que a noite avançava, a sombra dela alastrava sobre si.



terça-feira, 5 de setembro de 2017

Envenenemos o medo



Não te tentes
Não queiras querer
Não te sujeites a pertencer
Desenha um círculo em torno de ti
Chama-lhe fronteira
Chama-lhe muralha
Imagina-o parede
E não deixes nada entrar
Reconstrói-te
Refaz-te
Reforça-te
Mas não te tentes
Não te deixes tentar
Não voltes sequer a imaginar
Contém-te, detém-te
Usa mas não sintas
Utiliza mas não recordes
Se, por fraqueza, usares, esquece
Se, por necessidade, utilizares, ignora
Se te sentires fraquejar, desaparece
Mas não te tentes
Não desejes
Não recordes
E não te envolvas
Usa sem guardar
E resguarda-te no teu círculo
Fecha a fronteira
Ergue a muralha
E não arrisques a dor


domingo, 3 de setembro de 2017

sombras de uma alma perdida



Quando escrevi esta mistura de "coisas", em jeito de duplex ou macedónia, datei-o no final do Outono; verifico que afinal estava enganado. Os seguintes gatafunhos, organizados em pretensas frases, são intemporais, pior, são como vulcões adormecidos: nunca se sabe quando se reactivam e quanto podem destruir.

Fase cinzenta, introspectiva, caracterizada por um pessimismo agudo, um olhar para dentro, incómodo, amargo. Os dias que antecedem a morte do Outono propiciam a auto flagelação mental.
A perspectiva ambígua do mal e do remorso retratada na sombra.Tudo deriva do pecado ou do seu conceito, algo que fica impresso na mente, cravado a ferro em brasa, nos jovens-vitelos de leite-que todos fomos.
Ai os pecados, essa coisa insubstancial com que fomos formatados em criança, gratuita e altruisticamente por homens de vestidos de preto, dizendo-se porta-vozes de um ser maior, de um bem superior, de uma lei suprema e inquestionável.
O pecado é como o desejo: inevitável e muito apetecível.



As sombras da alma são vermelho sangue
Feridas abertas, disformes
Pústulas do teu lado mais sombrio
Que te acordam tarde na noite
Em revoadas de suores frios
As sombras da alma
São os teus fantasmas de estimação
São aves de rapina pairando
Sobre a tua memória
Avisos do passado, gritados no presente
Alertando-te o futuro, inutilmente
São gritos de dor, cáries da consciência
São dores embaraçantes
Que alimentarão para sempre
O borralho da tua vergonha


sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Para quando o Inverno?


Para onde olham os velhinhos sentados nos bancos de jardim?
Olharão o seu passado em episódios ou medem a distância até à meta?
Mal se movem, mal se tocam, falam com poucas e baixas palavras
Os seus olhares são de uma lentidão quase estudada e parecem captar o mais pequeno pormenor
O que pensam os velhinhos sentados nos seus bancos de jardim?
Pensarão em ampulhetas, em albuns de fotografias?
Nos tempos passados, no tempo que lhes resta, no que irão fazer quando se levantarem do banco?
Quão longe pensam os velhinhos sentados nos seus bancos de jardim?
Quem são os velhinhos sentados nos bancos de jardim?
Vestem-se de Inverno, sonham dias de Primavera