sexta-feira, 30 de junho de 2023

Do serrano que há em mim

 

A porta, em madeira velha e muito gasta, dava acesso a um pátio exterior largo, feito de pedra granítica que outros, muito tempo antes, cortaram e endireitaram à mão. As paredes da casa, vestidas de plantas trepadeiras, creio que eram buganvílias, davam cor e aroma ao conjunto. As tardes de junho eram perfumadas nesse pátio virado a oeste. Ao fundo, quase na curvatura do terreno, a vinha e o olival.

À volta, os contrafortes da Serra da Estrela recortados por profundos vales por onde circulavam riachos de água gelada e límpida. Recordo os salgueiros, fortemente enraizados nas margens, totalmente desgrenhados, folhas e ramos beijando a superfície das águas. Eram locais de sombra, de erva viçosa, de convite a longas sonecas com os pés dentro da água.

Aqui e ali um castanheiro, uma nogueira-imponentes no porte- e uma tília. As tílias eram as minhas preferidas; perfumavam o ar quente por todo o lado; um perfume envolvente e calmante. Os blocos de rocha, blocos arredondados de diversos tamanhos, saídos do solo, pintalgados de líquenes, conviviam com as grandes árvores. Não sei quem suportava quem, mas eram conjuntos harmoniosos.

Assim eram as pinceladas serranas da minha juventude em dias em que a primavera há muito tinha escancarado as suas portas ao verão.

Para mim tudo era calmo e equilibrado; para mim ainda a primavera da vida estava a começar e não se imaginava que aquele claro e limpo horizonte tantas vezes mais tarde viesse a mostrar-se negro escuro, tempestuoso.

Há muito que não visito esse muito meu espaço da infância e início da juventude, mas sinto-lhe a falta; por vezes sinto uma saudade imensa desses tempos. Desconfio que não voltarei a visitá-los; fazê-lo poderia ser uma desilusão e assim preservo estas memórias que me são caras.

Não, não deverei voltar aquele local, mas sinto-o, sei-o. Tenho-o entranhado nos ossos, é parte do meu código genético; é a Serra que há em mim.



sábado, 24 de junho de 2023

Until the end

 

Disseram-te ser terminal

Como a última estação de serviço

Sem qualquer serviço mais além

Sem sequer um além onde ir

Disseram-te que não haveria mais sonho

Nem muito espaço para respirar

Que nem um fôlego profundo iria ajudar

Nem o topo de uma montanha onde ficar

Não sabes o que sentiste

Foi uma surpresa brutal

Um imenso vazio pleno de dor

Um imenso espaço esvaziado de esperança

Tens uma vida, sabes que é finita

Mas pensas: 

falta sempre muito para o fim

                                                (Mas nem sempre é o tempo a ditar)

Até que não falta mais

E chegas ao terminal

Desfaz-te das malas,

E em silêncio

Despede-te do que amas

Arruma os pensamentos

Arquiva as memórias

Liberta-te do passado porque

Ainda tens uma ultima viagem

É interminável,

É indefinida,

É solitária

E não tem retorno


Negra, negra é a cor da esperança.

terça-feira, 13 de junho de 2023

O luar do noitibó

 

Uma lua imensa

Enchia de luz o canto mais sinistro da rua

De sons, apenas o de um noitibó

Parecia chamar-me

Eu, pendurado no borrão de um cigarro

Fumo dançando ao vento

Ideias voando por aí

Um luar intenso

Apelando mais um pranto ao noitibó

E este correspondendo

Como se me chamasse

Como se me escutasse

No meu silêncio fumado

A preguiça enchendo-me de brilho

E o cigarro queimou-se




terça-feira, 6 de junho de 2023

Feliz acaso

 

Um acaso

Uma mudança de percurso

Algo que chama a atenção

Um simples nada que prende

Um momento

Uma partilha

Uma partilha que gera um sorriso

Uma atenção no momento em que atenção é precisa

Uma mão estendida

A confiança alargada

Um beijo

Depois outro

Uma sequência de olhares

Uma sequência real

Uma real situação

Um devaneio levado ao sério

Um sério caso

Um ocaso por acaso

E um renascer a dois

 Podia ser paixão