quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Danças de luz taxadas por palavra ou Como ser alegremente fútil


Os fios de Sol do outono penetram através da vidraça. Esta é uma dessas tardes tranquilamente obtusas em que, comodamente sentado, pensas ideias e pensamentos avulso apenas por exercício e como forma de esfaqueares lentamente o ritmo ao tempo.

Fútil pensamento da tarde:

- Se as palavras utilizadas fossem taxadas individualmente, que consequências teria nos diálogos e nas relações interpessoais?

Enquanto divagas sobre o impacto financeiro na comunicação e começas a construir a tabela dos prós e contras, o teu olhar é desviado para o soalho onde os fios de sol, refractados pela vidraça, executam uma lenta, caótica e, no entanto, hipnótica dança nas travessas de madeira.

Quantas palavras não seriam poupadas, quantos silêncios ganhos tal como a atenção às expressões faciais tão expressivas?

A luz rodopiou de novo, desta vez ligeiramente para a esquerda e a sombra de um pequeno pássaro atalhou o seu voo ao longo da parede.

Se as palavras fossem taxadas, os olhares seriam bem atentos, as palavras seriam criteriosamente escolhidas e os charlatões, os “comunicadores” e os fãs confessos e viciados na sua voz, cuja intenção é apenas terem atenção a todo o custo ao imenso nada que transmitem ou leram e ouviram nos média, ficariam deprimidos.

Os pequenos raios de luz executam agora verdadeiros passos de tango argentino, e eu sinto-me transportado para uma das muitas salas de tango das ruas e ruelas de Buenos Aires.

Ah! Buenos Aires e os restaurantes em Puerto Madero, onde a luz é mais brilhante, a dança mais fluida e os silêncios mais tranquilos.

Definitivamente os latinos não iriam gostar de ver as suas longas conversas taxadas, mas sei que adoram a luz do Sol.

Os pequenos e frágeis raios de luz outonais transmitiram-me a beleza da dança das partículas luminosas e ensaiam a ultima dança do dia, aquela que acontece sempre que este lado da Terra vira as costas ao Sol. E nesta dança de morte lenta neste fim de tarde tranquilamente obtusa e fútil, declaro que o mundo seria muito melhor se as palavras fossem taxadas e a grande maioria das pessoas se dedicasse, de boca bem fechada, a observar a dança das partículas de luz, no soalho de um lugar qualquer.

 

 

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Eternamente Novembro



E eis que novembro bate à porta e diz a outubro para fazer o balanço do seu ano porque tem apenas um dia para deixar o espaço livre. Amanhã outubro morre por um ano e novembro – há sempre um novembro e é sempre estranho – chega, choroso, mas apenas por 30 dias.
O frio veio primeiro; o frio acha-se o porteiro.
Novembro é triste, é escuro e frio, é húmido e melancólico. É o mês viela do purgatório.
É quando apetece ouvir músicas suaves da juventude com a companhia desejada, enrolados num cobertor bem quentinho.
E por falar na companhia desejada, não sei de ti, por onde caminham teus passos, quem te leva agora a passear, pendurada nos seus ombros e sem deixar que as mãos descolem uma da outra, olhando para cima com esses olhos arqueados, essa boca fantástica, rasgada num imenso sorriso de felicidade.
Quem te bebe o sorriso por estes dias? Quem te leva a passear à chuva nestes dias cinzentos, para os outros, mas solarengos para ti?
Eis que novembro bate à porta e eu fico do lado de dentro da vidraça, olhando ao longe duas silhuetas familiares, unidas por um laço de paixão, encaixadas entre duas linhas de água que escorrem pelo vidro.
Novembro desorganiza-me as memórias, desequilibra-me os sentidos, traz-me esperanças vãs e rouba-me o calor do talvez: talvez, quem sabe, talvez ainda seja possível passear-te à chuva, numa tarde de novembro, com o teu sorriso enamorado como guarda-chuva e o desejo transformado em sol de verão.
Desconfio que vai chover, uma vez mais, amanhã.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Soalheiramente


Um fio de luz dançando sobre duas tábuas do soalho; um fino e frágil fio de luz que atravessou o vidro da janela, numa tarde avançada de verão.
Um traço de cor, cor de cristal, fio atrevido, tarde de sol, brisa de sal.
Lá longe, azul, o mar abraça o céu, o sol prepara o mergulho no horizonte e o tempo flui à velocidade do seu tempo. 
Silêncio, sossego, tranquilidade, ideal. 
Olho lá ao longe a ave que espreguiça sobre a onda de espuma, cavalgando brisas quentes e, nesta tarde avançada de verão, um fio de luz dança ao som do silêncio, brilhando como cristal tranquilo, embalado na espuma branca de uma onda no soalho.
Haverá melhor maneira de deixar a vida fluir?

domingo, 22 de abril de 2018

Cinzas de Inverno



Na melancolia de um céu de chumbo
recordo paisagens amargas
momentos escondidos em mapas sem X.
Renascem lágrimas de dor e suores de raiva,
reavivo mantos frios julgados esquecidos
e revejo fotos que não desejava.
Nesse pálido céu de chumbo
numa tarde de Inverno qualquer
que de longe me traz os remorsos
do que, sentindo já não ser, ainda sou,
sinto o peso da culpa
em tempestades de tremura.



Café Central



De costas para ti senti a tua presença;
sei que estás nessa mesa contra a qual, de costas,
sempre me sento.
Senti te o perfume quando cruzaste as pernas
e soube que tinhas chegado, como sempre, silenciosa.
De costas para ti peguei no copo
e ergui-o quase casualmente
na esperança que me reflectisse a tua imagem.
Uma vez mais apenas vi o líquido e bebi um trago.
De costas para ti ouvi-te puxar do maço, tirar um cigarro e acende-lo à 3ª tentativa.
Senti o aroma desse tabaco que não fumo
e o teu olhar cravado em mim.
De costas para ti acabei a bebida,
depositei o custo do consumo sobre a mesa,
levantei-me e saí,
sabendo que estavas a olhar, esperando que me voltasse antes de atravessar a porta do café.
De costas para ti, entranhou-se-me o teu ressentimento pela minha "descoragem".
De costas para mim, senti-me, uma vez mais, incapaz de te suportar o olhar
porque sei que, se o fizesse, entregar-me-ia inevitavelmente a ti.