domingo, 25 de janeiro de 2015

Ato-Retrato


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Auto-retrato

Pensa.
Pensa como quiseres, mas pensa e faz-me o retrato de memória.
Faz-me o retrato mas desenha-o; desenha-o a carvão.
Observa o que desenhaste.
Observa-me com atenção, traçado pelo teu pensamento, a carvão.
Pensa melhor, apaga-o e desenha-o de novo.
Ficou pior? Ficou melhor? Não consegues decidir?
Esborrata-o!
Esborrata-o com a mão que segurou o carvão com que me desenhaste
Agora recorta-o cuidadosamente e emoldura-o.
Coloca-o na parede, escolhe bem a parede; escolhe melhor.
Tem de ficar exactamente ao nível dos teus olhos,
Num ângulo de incidência perfeita da luz matinal
Num local por onde passes assiduamente
Mas nunca o vejas
Entretanto, pensa-me



1 comentário:

  1. Caro Homúnculo Perfeito, tentar desenhar assim, requer engenho e arte mão depurada. Até hoje não atreví mão tal desenho, a brancura lá permanece vazia à espera do borrão do carvão.
    Portanto espero que lhe continue a apetecer, a desenhar e a escrever:)))
    Bem-vindo.
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Tempo

À tua volta uma azáfama de balanços do ano moribundo, agradecimentos e mensagens esperançosas de ano novo. O passado que ainda não se consumou e a esperança do que há-de vir.
À tua volta as compras de ultima hora para colocar na mesa, os convites, as combinações de encontro logo à noite, o olhar para o relógio como se este avançasse sob pressão.
Estás sentado, ouvindo um piano que debita acordes melancólicos na companhia de uma voz estranha, envolvente, cativante. E pensas no que foi, no que gostarias que tivesse sido, no que perdeste ou não aproveitaste. Despedes-te, silenciosamente dos que deixaram de te bater à porta e dos que viram a tua porta ser-lhes fechada irremediavelmente. Questionas-te pela última vez (será?) se terás agido bem com estes últimos, como se isso pesasse na tua decisão.
O piano acompanha-te nas divagações, em jeito de balanço anual. Passou mais um ano, numa fase em que os anos têm o peso de décadas e lá estás tu a pensar no tempo. Há algum tempo que notas essa fixação pelo tempo, como se ele te pesasse cada vez mais, como se medisses os teus passos pelo ponteiro do relógio.
Tu, que ao longo dos anos coleccionaste coisas, as mais diversas coisas, desde objectos a amigos, tornando-te escravo de tudo quanto foste guardando e que tanto te pesa, tornaste-te também escravo dos minutos que originam horas e das horas que traduzem dias e dos dias que dobram anos.
À tua volta todos andam presos pela ilusão cativante de mais uma festa pendurada na contagem regressiva dos ponteiros do relógio, de um copo de espumante, de champanhe ou de cava, a ilusão cativante dos ponteiros que avançam contando regressivamente.
Regressivo é o tempo que te resta, o tempo que te angustia e te faz perder no limbo das memórias, dos balanços tardios, do tique-taque mecânico de coisas que contam sem parar.
E o piano, também sem parar, faz as teclas dedilharem sons, numa imagem regressiva, num som melancólico, hipnótico, alheio à azáfama das pessoas embriagadas pelo espírito de fim de ano. E tudo acontece numa contagem decrescente, numa paisagem cada vez mais agreste, progressivamente mais vazia.
É tempo de balanço. Sempre a palavra tempo…

sábado, 10 de janeiro de 2015

Da errância do medo

Sei do meu caminho que é incerto. E a certeza desse saber torna-me errante.
Por muito tempo acreditei que a incerteza do meu caminho tinha a vantagem do deslumbramento: a cada instante algo de novo, algo mais fresco me poderia deslumbrar.
Por anos vagueie pelo mundo por diversas razões, mas sempre na certeza de uma descoberta singular.
E toda a singularidade que encontrei foi o destapar desta ignorância umbilical sobre o mundo e as suas gentes. Os animais comportam-se da mesma maneira em todo o lado, os homens não. Mas os homens pecam da mesma maneira em todo o lado, têm ciúmes comuns por todo o lado, invejam da mesma maneira, choram da mesma forma, riem do mesmo modo, escondem os sentimentos de formas diferentes. E vingam-se.
Trajo o meu caminho incerto com a certeza da minha errância e o que procuro já não é o deslumbramento, mas apenas fugir dos meus pensamentos, do confronto interior, porque o meu maior medo é ficar, por qualquer motivo, em qualquer altura inesperada, sozinho comigo.

E apavora-me o inevitável diálogo que se produziria.