segunda-feira, 31 de julho de 2017

Amor clandestino



Assim que a viu entendeu haver amores proibidos.
Viu-a pela primeira vez quando os seus olhos se tocaram; só os olhos sabem tocar com a fragilidade que a verdade encerra.
É deste modo que as pessoas se vêm a sério, olhos nos olhos, olhos acariciando olhos em conversas sem som nem segundos significados.
Quando os seus olhos se encontraram, tardava o inverno na teimosia do outono, compreendeu duas coisas: o encaixe das formas e a percepção de algo que ultrapassa o desejo.
Seria, sem dúvida, o sentimento que os uniria, um amor saltimbanco numa relação contrabandista.
À margem da lei dos “bons” costumes, encontros furtivos, mãos sedentas de afectos obrigatoriamente contidos mas intensos, em carícias discretas cuja marca perdura na pele.
Aqueles dois tornaram-se o outro lado do amor, o amor fora da lei, o amor bandido, não aprovado, não benzido, não permitido.
Amam-se à distância de uma sociedade, porque nada mais lhes é permitido, mas o seu amor é vadio e não se deixa subjugar.
Amam-se na clandestinidade da razão, na distância de uma mão, mas sentem toda a liberdade de partilha, como só dois amantes o sabem sentir.
E eu, velho niilista empedernido, testemunha de tal compromisso, invejo amargamente a forma discreta, mas tão intensa, como partilham os seus olhares.


A cumplicidade da pele



Agarra a minha mão com a tua mão e leva-me a passear, de mãos dadas, pelas ruas da cidade.
Não fales, nada digas, a fala é para os principiantes, as palavras para quem quer seduzir.
Não precisamos disso, já atingimos aquela cumplicidade dos sorrisos, dos gestos dissimulados, do simples aceno de cabeça.
Ambos sabemos que direcção quer o outro tomar, mesmo antes de o dar a entender.
E os nossos silêncios valem mais que compêndios de ciência social.
Por isso não digas nada, pega na minha mão com a tua mão, toma a teu cuidado esses dois mapas de vincos vividos e leva-me por aí ao sabor da pele que nos une.

Ingenuamente feliz, escreveu na parede enquanto trauteava uma canção:

Este é o momento perfeito
Para te esculpir na luz
Que me inunda os olhos


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Terão as paredes sentimentos?


Na viela suja alguém pintou um anjo na parede. De fácies africana, tem as mãos no rosto numa expressão de sofrimento ou desespero. Olho com atenção o belíssimo desenho e verifico que tem uma asa cortada.
Sentado por baixo da imagem um sem-abrigo. Esfarrapado, segura na mão direita uma garrafa de vinho e mantém uma discussão com a sua mente. Terá um alter-ego ou é da bebida? Na esquina, posição aparentemente provocadora, uma prostituta procura aliciar um passante.
Esta parte da cidade não se encontra nos cartões postais, nem na publicidade feita para atrair os turistas.
Esta é a parte da cidade onde me perco por horas; percorro as estreitas ruas sempre húmidas. Curiosamente as outras ruas, as que são percorridas pelas pessoas “decentes” da cidade, não têm humidade e estão sempre pintadas.
Já me tenho perguntado se as ruas esquecidas choram o abandono, se não sentirão, sofridamente, o desdém de quem passa por engano ou apenas para atalhar caminho. Se sentem saudades doridas dos tempos em que eram novas, pintadas e iluminadas. Será a humidade sempre presente nestas velhas e sujas ruas fruto do seu desespero?
Sentirão as paredes o desprezo de quem por elas passa?
As ruas e vielas que percorro nos meus momentos de introspecção, são sujas, tristes e húmidas. Assim como os meus pensamentos! Por isso as procuro; procuro uma paisagem onde possa mimetizar o estado de espírito; é uma terapia, um cerimonial, uma insanidade inócua, um vazio desesperado por ser preenchido.
O anjo detalhadamente pintado na parede persegue-me; sinto como minha a sua expressão de perda, o seu desespero, a mutilação.
Revejo-lhe a face tapada pelas mãos de um realismo impressionante e parece-me ter notado algo brilhante parecido com uma gota de água escorrendo por baixo de uma das suas mãos. Teria sido ilusão de óptica, um preciosismo do artista ou o choro da velha parede?

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Se ao menos soubesse



Vejo-te falar e não oiço
Duas linhas carnudas de sangue
desenhadas na maldade da perfeição
Traços de uma sensualidade que me ensurdece
Frágil se torna a luz no teu reflexo
Teus cabelos, ondas revoltas onde meus dedos se afogam
E tu uma praia
Onde as gaivotas esboçam no ar o meu desejo
E a areia a cama onde te quero
Cega é a ausência do teu toque
E negra a distância que nos separa


Se soubesses o quanto o pensamento me foge para ti
Se ao menos entendesses o quanto me prendes a razão



O meu mundo...



O meu mundo é um rio
As suas margens são do tamanho dos caprichos
Caprichos do tempo,
ensaios de sorrisos e lamentos
E as águas turvas de sentimentos
Emoções que não sedimentaram
Agruras que não assentaram
O meu rio é um mundo estéril
Nele libertei a esperança
Na forma de um barco à vela
Barco feito de papel
O meu mundo é uma pia
Pia de pedra fria
Benzida em contra-mão
O meu mundo é uma mão
Mão onde cabe o meu mundo
O meu mundo é um rio
Cujas margens, um capricho,
Cabem na palma da minha mão




quarta-feira, 5 de julho de 2017

Do efeito do sal iodado



Sentado na areia húmida da praia, as pequenas ondas brincam em frentes dos meus olhos. Sente-se uma brisa morna e os salpicos de água acalmam a pele queimada.
Cheira a iodo; caramba, desde que tenho recordações, este cheiro está sempre presente.
Com os dedos puxo lentamente o cabelo molhado para trás enquanto o sol apaga as últimas gotas de água na pele.
É uma tarde tranquila nesta praia silenciosa e os pés fervem na fina areia.
Ela iria gostar. Estou a divagar; eu iria gostar de saber que ela iria gostar de estar aqui deitada ao meu lado, partilhando a areia escaldante, a brisa morna, a água refrescante e o silêncio tranquilizante.
Passaram-se semanas e dela tenho apenas a imagem e a distância. Onde estará? Em que pensará? Será que está neste momento a partilhar, sem o sabermos, o mesmo pensamento? E se estiver, sentirá o calor que emana da areia, a frescura da pele molhada, a brisa suave que acaricia o cabelo e o cheiro iodado do mar? Terá ela guardado a minha silhueta num local seguro e acessível?
Demasiados pensamentos em formato interrogativo nesta tarde quente de verão, numa qualquer praia algures na costa, sob um forte cheiro iodado de décadas.
Por onde caminharão os seus pensamentos? Colidirão com os meus sentimentos?
Levanto-me, dirijo-me à beira mar e mergulho neste manto transparente.
Uma sensação de frio percorre-me agradavelmente a pele e quebra-me o fio do pensamento.
Não sei se é o fluxo do vento, o sentido da corrente ou a silhueta feminina que me deixa à deriva.
Sei que cheira intensamente a iodo e a sal.


terça-feira, 4 de julho de 2017

Na sombra das negras asas





Não deixes que esses braços te abracem,
No calor seguro do seu aperto, acabarás estrangulada
Bloqueia os frémitos que a tua pele te transmite
Quando por ela ele passeia a sua mão forte, suavemente
Não bebas a ilusão dos seus lábios,
Não te deixes embalar pela sua voz segura e sensual
Não lhe oiças o riso
Não permitas sonhá-lo; não o penses
E sobretudo não te prendas nos seus olhos
Podes perder-te
Resiste ao desejo louco de o querer
Ninguém consegue possuir o etéreo
Ainda assim, ele levar-te-á para o outro lado da razão
E tu iras, pela sua mão, perdida de ti
Ausente da realidade
Areia solta por entre os dedos de uma mão