terça-feira, 28 de novembro de 2017

Do indelével jogo dos sentimentos marginais



"Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo." (in os 10 mandamentos)
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E a casa da tua próxima e o homem da tua próxima? Esses já poderás cobiçar sem que a fúria Divina se abata sobre ti e a tua casa?

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Primeiro motivo: ambos existem, pelo que há a probabilidade, mesmo que diminuta, de um dia se cruzarem.
Segundo motivo: frequentam espaços comuns, têm amigos comuns ou não nada têm em comum.
Terceiro motivo: apercebem-se da existência do outro, seja no local de trabalho, seja público ou da forma mais inesperada, mas apercebem-se da existência mútua e iniciam diálogo.
A partir daqui o jogo começa; as conversas, inicialmente ocasionais e vagas, tornam-se progressivamente mais frequentes. Trocam ideias, opiniões, gostos e preferências.
Uma fome crescente de contacto apodera-se de ambos, embora ainda não tenham consciência que o desejo lhes ganha espaço à razão. Quando se apercebem já a carência se instalou.
Apaixonam-se ou, tão só, desejam-se e, inevitavelmente, acabam por consumar o acto; todo aquele crescendo de sentir, de partilhar de querer possuir, acumulado ao longo do tempo, explode em sensações de partilha de novos territórios, mapas de pele nunca antes visitadas. O acto é intenso, como intenso é o que de bom apenas se faz uma vez. E fica a sensação de pouco, de querer mais e mais e mais rapidamente.
A dependência cresce mas a distância é grande e grande é o risco; e o risco, sendo perigoso, é motivador, desafiante.
Surge a primeira regra: não serem apanhados e a segunda: não ferirem os seus pares.
E partem para a clandestinidade.
Aproveitam cada fracção do pouco tempo que dispõem de partilha. Tocam-se e sentem-se como se fosse a última vez; escolhem cuidadosamente os locais, vestem delicadamente os olhares partilhados e partilham-se freneticamente, em batalhas sofregamente húmidas.
O risco de perda e a incógnita da próxima vez torna ainda mais intenso o contacto.
E é a intensidade do beijo que distingue os amantes marginais.



sábado, 18 de novembro de 2017

Fragmentos de jardim



Suspirou profundamente, sentado naquele banco de jardim, banco de momentos silenciosos.
Abriu os olhos, olhos espelhados de noites mal dormidas, noites pressentidas.
Os cães passeiam no relvado, chorando em troncos de árvore, num ritual ancestral. Acredito que procurem a árvore original, aquela onde o Adão dos cães se aliviou pela primeira vez. Legados caninos que escapam à sensibilidade distraída dos donos.
Os melros banqueteiam-se por entre saltos acrobáticos; a chuva da véspera animou os vermes da terra e estes animaram a passarada.
Mesmo em frente, um jovem casal vive o momento calmo da tarde; certamente ainda não tiveram a primeira prova de dor. As dores atacam quando menos se espera, de forma cruel, intempestiva. E tudo depende da resistência, da indolência, da sensibilidade para ultrapassar, mascarar, ignorar ou conviver com elas.
Já não se recorda da sua primeira dor; as primeiras dores não são como os primeiros beijos; por serem tão fortes, tão intensas, o consciente ordena ao inconsciente que se livre dessas memórias por DHL.
O primeiro beijo…ah, o primeiro beijo é outra coisa; é sabor a morango, em travo de cetim; é ardor na face e olhares por cima do ombro da companheira, com receio de que alguém esteja a olhar. É intenso, é inocente, flui da boca como azeite. O primeiro beijo é imediatamente emoldurado na memória, em tons de vermelho vivo.
Sorriu perante a recordação e imediatamente fechou a expressão em memória da última dor.
Os cães passeiam, os melros comem em saltos de ballet, os namorados excitam-se e sangram carícias e o homem puxa o chapéu para os olhos, desce o queixo para o peito e suspira a emoção.



Serão as memórias fragmentos de sentimentos? Dores e sorrisos em latas mentais de conserva...


Apocalipse ou a fragmentação do ser básico


12 E vi os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono; e abriram-se uns livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida; e os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras. 13 O mar entregou os mortos que nele havia; e a morte e o Hades entregaram os mortos que neles havia; e foram julgados, cada um segundo as suas obras. Apocalipse 20:12-13



E vi a inveja, a injúria e a incúria. Vi homens e mulheres invejando mulheres e homens.
Vi petardos de ignorância lançados a outros e mentiras escondidas num manto de cobardia.
Vi a mesquinhez e a baixeza mascarados de altruísmo e vi a dor dos atingidos.
E vi a nódoa e os cães de duas patas, caminhando hirtos como gente, falando como gente, mordendo como gente e como cães. E vi os vermes e os vermes falavam enquanto se retorciam e eram congruentes na sua linguagem de verme.
E vi doutores e carpinteiros, poetas e engenheiros, políticos e pedreiros, feridos de corno, doridos na alma e quebrados no amor-próprio.
E vi risos forçados e acenos acobardados e adulações e manifestações invertebradas.
Vi o ódio e a cegueira e sentimentos não retribuídos, ferindo como lâminas, minando o discernimento.
E também vi uma centelha de pureza quase extinta, quase nada.
E avancei pelo meio deles e não senti pena, não me dizem nada.
Ri-me e não me detive por nenhum.



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Meu amor



O amor
O poder do amor
O maravilhoso poder do amor
O maravilhosamente grandioso poder do amor
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O poder do amor só tem dor
É ferida, é ardor
É desejo com pudor
É um vai lá por favor
Que hoje estou cheio de dores...
O poder do amor
É primavera, é alergias
É inveja, é ciúme
É dor de corno
É o costume
Possessão
Consternação
Choro, dor e pregão
É pra vida e não pra morte
É excelente, com muita sorte
O amor é uma flor
Colhida no ano anterior
É sorriso e é lágrima
É traição
Devoção e emoção
O amor é bipolar
É pra toda a gente usar
É democrático, é tirano
É o fogo do candeeiro
É o melhor e o pior
É o poema, a enciclopédia
É a Maria e a Noémia
O Joaquim e o André
O amor é o que é
Gosto muito mas nem tanto
O amor é um espanto



O amor é a invenção mais profícua do diabo

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

• Alucinações em www.com ou Realidades em WiFi


Vozes sem rosto
Multidões sem forma
Cortadas por formas geométricas
A preto e branco
Céus de violetas
Em tons caqui
Fumos espessos
Escapam por entre os dedos
E a rua flui até ao seu fim
Ao meio um cruzamento
Ou será uma encruzilhada
Onde mulheres se perdem
Se mostram, se expõem
Um red light district.com
Em formato de bolso
E os homens espumam
(os homens espumam sempre e facilmente)
Os homens agitam-se
Os olhos excitam-se
Em céus de violetas
Com tons de caqui
Conversas estudadas
Frases usadas
Dirigidas, manipuladoras
Conversas pobres
Que acabam em trapos espalhados no chão
E os céus de violetas anunciam tempestade
E há sempre uma nova praia
Uma enseada à espera de ser descoberta
E um porto de abrigo usado, desgastado, devoluto
A cabeça estala, a dor agudiza
A noite vai longa, quase morta
E o copo nunca esteve vazio