quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

2021

 

Não sei que te diga

Pois já não sei beijar

No beijo punha todo o meu discurso

Todas as emoções e sentimentos

Que te queria transmitir

Se me tiraram o beijo

Como poderás saber que ainda te gosto

Que ainda me importo

Que és o centro da minha vida?

Tento que me leias nos olhos

Essa enciclopédia de amor que te escrevi em pensamento

Mas os olhos não se colam como os lábios,

Não transmitem o seu calor emotivo

Não provocam a descarga de adrenalina necessária

Para que a mensagem passe.

Os olhos completavam os lábios na perfeição

Mas agora estão órfãos

Por isso não sei que te diga

Até que me libertem os lábios

Até que a comunicação entre nós se restabeleça

Até que tudo o que de bom era volte a ser

 

E por isso o que mais desejo para 2021 é que, de forma segura, caiam as máscaras que tapam as bocas, se libertem as mãos que acariciam, se desprendam os braços que abraçam e se soltem os beijos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

2020

2020 



 E de repente os olhos ganharam outra importância, passaram a ser a parte visível da face e do estado de espírito de cada um. São a expressão do sorriso, da tristeza, da surpresa. 
Neles habita a esperança e a desilusão, o pedido e a gratidão, o medo e a excitação. 
E de repente o mundo aparece vendado, como se um manto de nevoeiro se tivesse instalado em cada um. As bocas são proibidas em público. 
E os afectos, como se expressam neste mundo vendado? 
 Por olhares... são olhares…

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Carnaval ou a realidade contida


De branco e preto uma máscara criei,
com laivos de silêncio a coloquei,
e com grande exagero a retoquei.
No canto direito do olho esquerdo uma lágrima desenhei,
e nela toda a minha nostalgia derramei.
De máscara posta pela rua passeei
e por entre as outras máscaras me misturei.
De todas as que vi a que mais me tocou,
era a minha, porque despida de mim, nua de som,
era a mais real que alguém inventou.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Outono



Por vezes ainda recordo o som da chuva
nas folhas amarelecidas
E o cheiro da terra molhada ao nosso redor
Agora sei que era curto
o longo passeio pelo parque
O tempo arrefecia
mas era quente a tua mão
Gosto de recordar pelos dois
esses momentos perdidos
agora que estás ao abrigo do tempo
E chove-me de saudade o Outono

domingo, 9 de agosto de 2020

Relato da morte de um vitral

Recentemente revisitei o banco de pedra sob a tília
onde me sentava nas tardes de verão,
quando o sol a pique queimava o que mexia.
Ali me sentava com o meu avô materno, e
à sombra dessa árvore centenária, falávamos,
ou ele contava-me estórias da sua juventude
e daquele lugar perdido no alto da serra,
mesmo em frente a outra serra igualmente perdida.
O cheiro da tília e o fresco que a sombra proporcionava
associados ao timbre da voz do meu avô,
embalavam-me. Era um cenário hipnótico
Era como se aquele velho e aquela centenária árvore
tivessem o poder de deixar o tempo suspenso
Quando agora voltei o banco já não estava,
A velha árvore também não
O calor, esse mantinha-se
Sentei-me no muro de pedra mesmo por detrás do local
E fiquei em silêncio, à espera.
Ao fim de algum tempo apareceu o banco
E logo de seguida, mas muito discretamente, a árvore.
E finalmente, dobrando a esquina da velha casa dos meus primos,
mesmo por baixo do beiral onde a gata malhada
se espreguiça ao sol, um chapéu preto de aba larga,
um velho vestido de cinzento escuro
e um menino
Vinham os 2 concentradíssimos à conversa
Passaram por mim sem me ver,
Sentaram-se, de costas para mim, no banco
e ficaram os dois à conversa
Não se aperceberam do nó que me apertou a garganta
E do grão de poeira que me irritou os olhos
do sol abrasador e do cheiro tranquilo da tília
Nem mesmo notaram que, à sua volta,
Nem uma sombra se deitava no chão
sob esse sol impiedoso sol de verão
Com um sorriso melancólico levantei-me,
Despedi-me dos dois com a dolorosa certeza
de não mais os voltar a encontrar
Virei costas e desci a rua empedrada para a vila

sábado, 8 de agosto de 2020

Negros desejos

Dark is the color of my desire



Do destino que à nascença me coube
Já lhe cumpri mais de metade
Queima célere a mecha da vida
E do que ainda me cabe
Peça cada vez mais tingida
Vontade que já não me move
Espero que venha depressa
Essa mulher fugidia
A quem muitos chamam morte
E eu chamo outra sorte
Suave destino de vida
Doce carícia perdida
Não é fim, é mais forte
É um princípio, um mote
Compromisso desafiante
Um navegar sem ter norte
É parar, é dormir e satisfazer de prazer
Essa mulher de má sorte,
A quem todos chamam Morte.

Trilhos rasgados

Regressei a esse passado incerto
Que pensara apagado
E não gostei de me ver
Tentei subtrair-me à memória
Incómoda
Inutilmente
As imagens mantêm-se
Intocadas
E a dor recomeçou
Intensa

domingo, 2 de agosto de 2020

Sombras da alma

Hoje há um pessimismo agudo, um olhar para dentro, incómodo, amargo. Os dias que antecedem a morte do Outono normalmente propiciam a autoflagelação mental. 

(Este é um texto outonal)

A perspectiva ambígua do mal e do remorso retratada na sombra. É tudo derivado do pecado ou do seu conceito, fica impresso na mente, cravado a ferro em brasa, nos jovens, vitelos de leite, que todos fomos. 
Ai os pecados, essa coisa insubstancial com que fomos formatados em criança, gratuita e altruisticamente por homens vestidos com vestidos, dizendo-se porta-vozes de um ser maior, de um bem superior, de uma lei suprema e inquestionável. 
Mas os pecado é como o amor: inevitável, traumatizante e apetecível. 

 
As sombras da alma são vermelho sangue 
Feridas abertas, disformes 
Pústulas do teu lado mais sombrio 
Que te acordam tarde na noite 
Em revoadas de suores frios 
As sombras da alma 
São os teus fantasmas de estimação 
São aves de rapina pairando 
Sobre a tua memória 
Avisos do passado, gritados no presente 
Alertando-te o futuro, inutilmente 
São gritos de dor, cáries da consciência 
Assim são essas  sombras da alma

Essas dores embaraçantes 
Que acompanharão para sempre 
O borralho da tua vergonha



domingo, 21 de junho de 2020

Num sussurro arrepiado




Havia um alpendre e um momento

Um banco de pedra, um rasgo de vento

Havia algo certo e algo incerto

Naquele nevoeiro ao fim da tarde

Havia um sussurro, estou quase certo

E tudo suspenso num fio de tempo

Sentia-se um sopro e era frio

E logo de súbito um arrepio

Um profundo som descia do vale

Nada se movia, ninguém que fale

Diziam que o medo descia por lá

Lendas de lareira em noites escuras

E saia um pregão:

Oxalá nasça a lua

Talvez fosse um sonho,

Uma memória perdida

Um rasgo, um vislumbre

Uma história esquecida

Mas era um momento

Um lapso de tempo

Um fio de história

Era um sussurro arrepiado

Um medo esquecido

Quiçá apagado

Vindo lá bem do fundo

Dos primórdios da memória

 

segunda-feira, 4 de maio de 2020






Lá, onde o mar desagua nas falésias abruptas, e a costa é recortada por pequenas enseadas escondidas do vento, atapetadas de areia mais escura e calhau rolado.
Lá, onde o mar é mais iodado e os rochedos são finas lâminas de xisto.
Lá, onde os prados fogem ao olhar, as colinas são suaves e preguiçosas e as ervas têm cheiro de condimento.
Lá, onde as pessoas são brandas e o tempo se mede pelas rugas, onde as casas são térreas e brancas, com finos recortes de azul ou amarelo. 
É lá que me refugio sempre que posso, onde me dispo do que pareço ser, onde me perco num horizonte só meu e respiro a paz que poucas vezes alcanço.
No meu cantinho quase selvagem, onde tudo parece ter sido feito à minha medida, a noite é feita de estrelas e a lua é mais conversadeira.
Naquela costa primitiva, bem juntinho à cadeia montanhosa, tudo o que me rodeia é fragmento de mim e, por vezes, em dias de sorte, consigo cheirar a felicidade.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Aquele olhar bucólico



Com um pedaço de carvão e meia dúzia de riscos, esbocei a rua onde cresci. Agora que o tempo mo permite, recordo-a nos contornos apressados do traço e apercebo-me de que era particularmente bonita nas noites de nevoeiro, em inícios de Dezembro, quando o Inverno descia das montanhas, frio como navalhas.

As pessoas eram sombras, os plátanos eram sombras e as sombras, sombras eram de si mesmas.

Eram noites de mistério e emoção; noites de negro cinza e, lá ao fundo, o cemitério com as suas altas paredes e o seu portão de ferro forjado, dominava imponente, ladeado por dois ciprestes.

Nevoeiro vivo em farrapos pegajosos que se ria dos vultos.

E tudo era possível naqueles tempos em que uma calma silenciosa dominava essas noites

E era tão bom vaguear por entre as sombras.

E a lua ria velada naquela meia dúzia de traços a carvão.

sexta-feira, 6 de março de 2020

São apenas pedaços de mim





Cala-se a voz no silêncio, do sonho 
desperto de ti. Ensandecido
te procuro e não alcanço. Esquecido
torno a dormir. Medonho
é o desejo de te sentir
Tremenda a vontade de fugir
E nesta contradição pendular
balanço entre não querer e alcançar
Maldigo a hora em que senti
Quão gostoso é gostar de ti



terça-feira, 3 de março de 2020

Fragmentos de jardim


Suspirou profundamente, sentado naquele banco de jardim, banco de momentos silenciosos.
Abriu os olhos, olhos espelhados de noites mal dormidas, noites pressentidas.
Os cães passeiam no relvado, chorando em troncos de árvore, num ritual ancestral. Acredito que procurem a árvore original, aquela onde o Adão dos cães se aliviou pela primeira vez. Legados caninos que escapam à sensibilidade distraída dos donos.
Os melros banqueteiam-se por entre saltos acrobáticos; a chuva da véspera animou os vermes da terra e estes animaram a passarada.
Mesmo em frente, um jovem casal vive o momento calmo da tarde; certamente ainda não tiveram a primeira prova de dor. As dores atacam quando menos se espera, de forma cruel, intempestiva. E tudo depende da resistência, da indolência, da sensibilidade para ultrapassar, mascarar, ignorar ou conviver com elas.
Já não se recorda da sua primeira dor; as primeiras dores não são como os primeiros beijos; por serem tão fortes, tão intensas, o consciente ordena ao inconsciente que se livre dessas memórias em DHL.
O primeiro beijo…ah, o primeiro beijo é outra coisa; é sabor a morango, em travo de cetim; é ardor na face e olhares por cima do ombro da companheira, com receio de que alguém esteja a olhar. É intenso, é inocente, flui da boca como azeite. O primeiro beijo é imediatamente emoldurado na memória, em tons de vermelho vivo.
Sorriu perante a recordação e imediatamente fechou a expressão em memória da última dor.

Os cães passeiam, os melros comem em saltos de ballet, os namorados excitam-se e sangram carícias e o homem puxa o chapéu para os olhos, desce o queixo para o peito e suspira a emoção. 

Serão as memórias fragmentos de sentimentos? Dores e sorrisos em latas mentais de conserva



Chuva em pétalas doridas



Chuva. 
Som cadenciado, compassado, como militares desfilando muito ao longe.
E de longe se aproxima, vindo de cima e de lado, ser alado.
Chuva, chuva fina, peregrina, cadente, por vezes urgente, outras, persistente.
Fria cai em fiadas, dias de noites amargas, ideias peregrinas, pouco sadias, enlutadas por dores veladas, dores de falta, mascaradas por sorrisos de nada.
Chuva, doida chuva que não poisa, não tem assento, tal como o vento.
Chuva que por vezes acalma, em melodia recortada, filigrana, ouro sacana que não me sacia a alma, essa esponja que retém o que não deve e me não salva, das noites perdidas de chuva, dessa chuva que cheira a malva, memórias de infância e de novo a calma.
Húmida névoa que chora e sobre mim se demora, presença constante, pranto delirante que pede às mãos que me rasguem deste céu ou no ar as erga, olhos no chão, consciência plena da pequenez que me fez.
Chuva, densa chuva, nevoeiro, mau-olhado, formigueiro, que me ecoa aos ouvidos, vindo de dentro, tolhe os sentidos.
Chuva plena que não termina. Não reajo, não resisto, deixo-me ir pelos riachos, já sem tino, desatino, e desaguo na loucura deste som de violino.
Já não sinto, não me consinto, sinto a chuva, não me sinto. 

sábado, 11 de janeiro de 2020

Da pálida dança do desejo



Pensei-te

Como se tivesse inventado o verbo querer,

Ali mesmo na esquina do desejo.

Pensei-te

Como se fosses onda em maré cheia

E eu rochedo na beira da praia

 

Hoje apenas te penso

Como quem rega recordações

Em dia de vento

Sob nuvens escuras que ameaçam chuva

Chuva essa que nunca vem

Outrora pensava-te por entre tragos de fumo

De um cigarro infindável

E nesse fumo via o teu corpo cheio,

Depois esguio

Depois nada

E mais um trago de fumo

E de novo tu

E de novo nada

Hoje já não sei

Se te penso ou se te esfumas

Por isso rego-te em memórias

Até que a memória da chuva se esvaia

Por entre dois tragos de fumo