domingo, 29 de janeiro de 2017

Geração transfronteiriça

Texto deprimente para avançados de vida ou, a porra da vida passou por mim de carrinho


Se tens a minha idade, andaste numa escola primária, usaste um quadro de ardósia, paus de giz branco, sentavas-te num banco de madeira, tampo inclinado. Os teus pais deram-te um estojo com lápis de carvão, esferográfica Bic, borracha, afiadeira. O teus professor obrigava-te a fazer contas de cabeça e tiveste de decorar as dinastias, a divisão administrativa do País (ainda um Império de sonhos tresloucados), o nome das serras, dos rios e mais uma série de coisas “inúteis”, que os jovens de hoje, com um clique, descobrem num minuto na Internet.
Ao fim de alguns anos a penar de lápis e borracha na mão, com um pouco de sorte recebeste uma calculadora. Se foste para a faculdade, começaste a ouvir falar de uns equipamentos muito grandes, chamados computadores, que permitem fazer rotinas de cálculo complexo; antes tens de aprender umas estranhas linguagens, a que chamam linguagem de programação e aprender a furar uns cartões. Os computadores são máquinas enormes, em enormes salas e há longas filas para quem quer programar.
Acabas a faculdade ou o 12º ano e arranjas emprego. Os projectos demoram semanas a fazer, tudo à mão.
Um belo dia o teu chefe dá-te para as mãos um computador de mesa, com uns programas de cálculo, outros de texto, uns programas de desenho e uma coisa que se chama e-mail e lá tens tu de aprender tudo porque os teus jovens colegas, uma geração mais novos, já aprenderam a usar aquilo tudo na escola. Sentes-te deslocado, este não é o mundo em que te formaram e tens de aprender tudo de novo, porque os empregos escasseiam, a concorrência dos mais novos é feroz e eles levam-te vantagem com essas novas tecnologias. Esforças-te por aprender, a tua experiência já não tem qualquer valor; os novos gestores olham para ti como um técnico caro e o mercado de emprego tem gente disponível e a mais baixos custos.
Conforta-te, foste criado numa sociedade que vivia ao ritmo da vida e dos ponteiros do relógio e, de repente, vives numa sociedade de bytes, megabytes e gigabytes.
Aderes aos computadores, deslumbras-te pela Internet e pelos telemóveis, rendes-te completamente às novas tecnologias. Este novo mundo permite-te quase tudo sem teres de sair de casa. De repente descobres que não tens privacidade, expuseste completamente a tua vida.
Pertences a uma geração que viu morrer um conceito social e nascer outro completamente diferente e, podes sentir-te deslocado ou mesmo perdido com os novos valores sociais. Já não vives na tua aldeia, vila ou pequena cidade, és um cidadão global e a dimensão do teu novo mundo é assustadora.
Tens o direito à diferença e à indignação, mas há muito que perdeste essas qualidades e não queres ser visto como um “marginal”. Ensinaram-te que ser diferente pode ter um preço demasiado alto, por isso resignas-te, inconformado contigo. E essa dualidade consome-te, roí-te o amor-próprio e deixa-te amargo.
Descansa, morrerás como qualquer outro e, em pouco tempo, já ninguém se lembrará de ti.
Consola-te, a tua morte é coisa que não terás de programar.



sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Manifesto viperino

"Num povo ignorante a opinião pública representa a sua própria ignorância."Fonte - MáximasAutor - Maricá , Marquês
"O desprezo é a forma mais subtil de vingança."Autor - Gracián y Morales , Baltasar

Se procuras poemas de amor podes parar por aqui. Hoje não há.
Frases bonitas? Talvez nos vizinhos; é provável que tenham feito umas transcrições interessantes doutro alguém que não suas. É o mérito de fazer bem nada fazendo (ver exemplos acima; imaginá-los sem referência e decerto entenderão o figurão que se pode fazer). Os exemplos foram tirados ao acaso, numa minuciosa pesquisa de 42 horas.
Hoje o dia está aziago: não há nuvens, não há frio nem, tampouco, chuva.
Os passarinhos não andam malucos, os cães estão desaluados e o canário da vizinha irrita-me solenemente, ou seja, os canais de televisão estão cada vez mais horrorosos.
Cansam-me as verdades hipócritas, vestidas por medida para a ocasião; cansam-me as espertezas cultas mal escritas, mal alinhavadas e muito pouco paridas.
Apetece-me um prado florido, flores lindíssimas e bem cheirosas para poder pisar à vontade e com toda a convicção.
Irrita-me a canseira de nada fazer, a inércia do movimento aceleradamente retardado e a porta da garagem pendurada pelos gonzos.
Estou farto de políticos, apolíticos, paralíticos da opinião e apócrifos.
Não me apetece ter paciência para ser paciente.
Não me apetecem amores, desamores, amizades, rancores, ciúmes e favores; se vierem acompanhados de uma caixa de chocolate preto belga com cerca de 78% de cacau repensarei a minha opinião. Beijinhos, hoje não por favor; podem sempre mandar por correio registado, não esquecendo o código postal e o nº da porta.
Antitabagistas ao largo, de preferência num barco a naufragar, bem no meio do mar.
Só penso em poltronas, (e por que não matronas) , uma música escolhida por mim-condição obrigatória neste dia- maço de tabaco ao lado e um isqueiro funcional porque, para disfuncional já chego eu.

Que Deus vos abençoe que é a sua obrigação; eu quero mais é portar-me mal!
E se este texto tiver algum erro, que se dane...