sábado, 18 de novembro de 2017

Fragmentos de jardim



Suspirou profundamente, sentado naquele banco de jardim, banco de momentos silenciosos.
Abriu os olhos, olhos espelhados de noites mal dormidas, noites pressentidas.
Os cães passeiam no relvado, chorando em troncos de árvore, num ritual ancestral. Acredito que procurem a árvore original, aquela onde o Adão dos cães se aliviou pela primeira vez. Legados caninos que escapam à sensibilidade distraída dos donos.
Os melros banqueteiam-se por entre saltos acrobáticos; a chuva da véspera animou os vermes da terra e estes animaram a passarada.
Mesmo em frente, um jovem casal vive o momento calmo da tarde; certamente ainda não tiveram a primeira prova de dor. As dores atacam quando menos se espera, de forma cruel, intempestiva. E tudo depende da resistência, da indolência, da sensibilidade para ultrapassar, mascarar, ignorar ou conviver com elas.
Já não se recorda da sua primeira dor; as primeiras dores não são como os primeiros beijos; por serem tão fortes, tão intensas, o consciente ordena ao inconsciente que se livre dessas memórias por DHL.
O primeiro beijo…ah, o primeiro beijo é outra coisa; é sabor a morango, em travo de cetim; é ardor na face e olhares por cima do ombro da companheira, com receio de que alguém esteja a olhar. É intenso, é inocente, flui da boca como azeite. O primeiro beijo é imediatamente emoldurado na memória, em tons de vermelho vivo.
Sorriu perante a recordação e imediatamente fechou a expressão em memória da última dor.
Os cães passeiam, os melros comem em saltos de ballet, os namorados excitam-se e sangram carícias e o homem puxa o chapéu para os olhos, desce o queixo para o peito e suspira a emoção.



Serão as memórias fragmentos de sentimentos? Dores e sorrisos em latas mentais de conserva...


Apocalipse ou a fragmentação do ser básico


12 E vi os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono; e abriram-se uns livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida; e os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras. 13 O mar entregou os mortos que nele havia; e a morte e o Hades entregaram os mortos que neles havia; e foram julgados, cada um segundo as suas obras. Apocalipse 20:12-13



E vi a inveja, a injúria e a incúria. Vi homens e mulheres invejando mulheres e homens.
Vi petardos de ignorância lançados a outros e mentiras escondidas num manto de cobardia.
Vi a mesquinhez e a baixeza mascarados de altruísmo e vi a dor dos atingidos.
E vi a nódoa e os cães de duas patas, caminhando hirtos como gente, falando como gente, mordendo como gente e como cães. E vi os vermes e os vermes falavam enquanto se retorciam e eram congruentes na sua linguagem de verme.
E vi doutores e carpinteiros, poetas e engenheiros, políticos e pedreiros, feridos de corno, doridos na alma e quebrados no amor-próprio.
E vi risos forçados e acenos acobardados e adulações e manifestações invertebradas.
Vi o ódio e a cegueira e sentimentos não retribuídos, ferindo como lâminas, minando o discernimento.
E também vi uma centelha de pureza quase extinta, quase nada.
E avancei pelo meio deles e não senti pena, não me dizem nada.
Ri-me e não me detive por nenhum.