domingo, 12 de junho de 2022

Em tons de sépia

 

É quase sempre quando te encontras sozinho que ela vem, suave e silenciosamente e se instala.

Apodera-se da tua vontade e controla-te os pensamentos.

És o seu instrumento, um fio condutor entre o passado e o presente, e o passado e o passado mais longínquo.

Leva-te por acontecimentos há muito adormecidos: momentos de felicidade, situações embaraçosas, histórias dolorosas, dores que marcaram, palavras que feriram, palavras que tocaram fundo.

Leva-te a recordar bocas há muto fechadas, sons remotos, porém familiares. Faces que guardas no coração, corações que te fizeram crescer e seres quem és.

Quando ela se instala, sedutora, ficas irremediavelmente perdido; ela é uma droga poderosa que te transporta no tempo, entorpecido. Não resistes; melhor, não tentas resistir, apenas te deixas levar para outras dimensões, caminhos antigos, sentires profundos. Voltas a vielas escuras, húmidas e escorregadias que evitaste lembrar por muitos anos; voltas a sentir sob os pés aquela areia fina e húmida por onde corrias para mergulhar nas ondas do mar, esse mar agreste de águas frias e ondas traiçoeiras cujo cheiro a algas e iodo te marcaram a infância e a juventude. Voltas a sentir a ansiedade e os medos que, em criança, te marcaram fins de tarde (muitas vezes sem qualquer razão de ser). Voltas a ser pequeno e frágil, jovem atrevido e irreverente.

E tudo porque ao longo do tempo procuras cada vez mais estar sozinho, facilitando-lhe a presença, facultando-lhe o domínio, deixando-a possuir-te.