É quase sempre quando te encontras sozinho que ela vem,
suave e silenciosamente e se instala.
Apodera-se
da tua vontade e controla-te os pensamentos.
És o seu instrumento, um fio condutor entre o passado e o
presente, e o passado e o passado mais longínquo.
Leva-te por acontecimentos há muito adormecidos: momentos
de felicidade, situações embaraçosas, histórias dolorosas, dores que marcaram,
palavras que feriram, palavras que tocaram fundo.
Leva-te a recordar bocas há muto fechadas, sons remotos,
porém familiares. Faces que guardas no coração, corações que te fizeram crescer
e seres quem és.
Quando ela se instala, sedutora, ficas irremediavelmente
perdido; ela é uma droga poderosa que te transporta no tempo, entorpecido. Não
resistes; melhor, não tentas resistir, apenas te deixas levar para outras
dimensões, caminhos antigos, sentires profundos. Voltas a vielas escuras,
húmidas e escorregadias que evitaste lembrar por muitos anos; voltas a sentir
sob os pés aquela areia fina e húmida por onde corrias para mergulhar nas ondas
do mar, esse mar agreste de águas frias e ondas traiçoeiras cujo cheiro a algas
e iodo te marcaram a infância e a juventude. Voltas a sentir a ansiedade e os
medos que, em criança, te marcaram fins de tarde (muitas vezes sem qualquer
razão de ser). Voltas a ser pequeno e frágil, jovem atrevido e irreverente.
E tudo porque ao longo do tempo procuras cada vez mais
estar sozinho, facilitando-lhe a presença, facultando-lhe o domínio, deixando-a
possuir-te.
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