terça-feira, 25 de agosto de 2020
Carnaval ou a realidade contida
De branco e preto uma máscara criei,
com laivos de silêncio a coloquei,
e com grande exagero a retoquei.
No canto direito do olho esquerdo uma lágrima desenhei,
e nela toda a minha nostalgia derramei.
De máscara posta pela rua passeei
e por entre as outras máscaras me misturei.
De todas as que vi a que mais me tocou,
era a minha, porque despida de mim, nua de som,
era a mais real que alguém inventou.
sexta-feira, 21 de agosto de 2020
Outono
Por vezes ainda recordo o som da chuva
nas folhas amarelecidas
E o cheiro da terra molhada ao nosso redor
Agora sei que era curto
o longo passeio pelo parque
O tempo arrefecia
mas era quente a tua mão
Gosto de recordar pelos dois
esses momentos perdidos
agora que estás ao abrigo do tempo
E chove-me de saudade o Outono
domingo, 9 de agosto de 2020
Relato da morte de um vitral
onde me sentava nas tardes de verão,
quando o sol a pique queimava o que mexia.
Ali me sentava com o meu avô materno, e
à sombra dessa árvore centenária, falávamos,
ou ele contava-me estórias da sua juventude
e daquele lugar perdido no alto da serra,
mesmo em frente a outra serra igualmente perdida.
O cheiro da tília e o fresco que a sombra proporcionava
associados ao timbre da voz do meu avô,
embalavam-me. Era um cenário hipnótico
Era como se aquele velho e aquela centenária árvore
tivessem o poder de deixar o tempo suspenso
Quando agora voltei o banco já não estava,
A velha árvore também não
O calor, esse mantinha-se
Sentei-me no muro de pedra mesmo por detrás do local
E fiquei em silêncio, à espera.
Ao fim de algum tempo apareceu o banco
E logo de seguida, mas muito discretamente, a árvore.
E finalmente, dobrando a esquina da velha casa dos meus primos,
mesmo por baixo do beiral onde a gata malhada
se espreguiça ao sol, um chapéu preto de aba larga,
um velho vestido de cinzento escuro
e um menino
Vinham os 2 concentradíssimos à conversa
Passaram por mim sem me ver,
Sentaram-se, de costas para mim, no banco
e ficaram os dois à conversa
Não se aperceberam do nó que me apertou a garganta
E do grão de poeira que me irritou os olhos
do sol abrasador e do cheiro tranquilo da tília
Nem mesmo notaram que, à sua volta,
Nem uma sombra se deitava no chão
sob esse sol impiedoso sol de verão
Com um sorriso melancólico levantei-me,
Despedi-me dos dois com a dolorosa certeza
de não mais os voltar a encontrar
Virei costas e desci a rua empedrada para a vila
sábado, 8 de agosto de 2020
Negros desejos
Do destino que à nascença me coube
Já lhe cumpri mais de metade
Queima célere a mecha da vida
E do que ainda me cabe
Peça cada vez mais tingida
Vontade que já não me move
Espero que venha depressa
Essa mulher fugidia
A quem muitos chamam morte
E eu chamo outra sorte
Suave destino de vida
Doce carícia perdida
Não é fim, é mais forte
É um princípio, um mote
Compromisso desafiante
Um navegar sem ter norte
É parar, é dormir e satisfazer de prazer
Essa mulher de má sorte,
A quem todos chamam Morte.
Trilhos rasgados
Que pensara apagado
E não gostei de me ver
Tentei subtrair-me à memória
Incómoda
Inutilmente
As imagens mantêm-se
Intocadas
E a dor recomeçou
Intensa
domingo, 2 de agosto de 2020
Sombras da alma
Hoje há um pessimismo agudo, um olhar para dentro, incómodo, amargo. Os
dias que antecedem a morte do Outono normalmente propiciam a autoflagelação
mental.
(Este é um texto outonal)
A perspectiva ambígua do mal e do remorso retratada na sombra. É tudo
derivado do pecado ou do seu conceito, fica impresso na mente, cravado a ferro
em brasa, nos jovens, vitelos de leite, que todos fomos.
Ai os pecados, essa coisa insubstancial com que fomos formatados em criança,
gratuita e altruisticamente por homens vestidos com vestidos, dizendo-se
porta-vozes de um ser maior, de um bem superior, de uma lei suprema e
inquestionável.
Mas os pecado é como o amor: inevitável, traumatizante e apetecível.
As sombras da alma são vermelho sangue
Feridas abertas, disformes
Pústulas do teu lado mais sombrio
Que te acordam tarde na noite
Em revoadas de suores frios
As sombras da alma
São os teus fantasmas de estimação
São aves de rapina pairando
Sobre a tua memória
Avisos do passado, gritados no presente
Alertando-te o futuro, inutilmente
São gritos de dor, cáries da consciência
Assim são essas sombras da alma
Essas dores embaraçantes
Que acompanharão para sempre
O borralho da tua vergonha