quinta-feira, 27 de julho de 2017

Terão as paredes sentimentos?


Na viela suja alguém pintou um anjo na parede. De fácies africana, tem as mãos no rosto numa expressão de sofrimento ou desespero. Olho com atenção o belíssimo desenho e verifico que tem uma asa cortada.
Sentado por baixo da imagem um sem-abrigo. Esfarrapado, segura na mão direita uma garrafa de vinho e mantém uma discussão com a sua mente. Terá um alter-ego ou é da bebida? Na esquina, posição aparentemente provocadora, uma prostituta procura aliciar um passante.
Esta parte da cidade não se encontra nos cartões postais, nem na publicidade feita para atrair os turistas.
Esta é a parte da cidade onde me perco por horas; percorro as estreitas ruas sempre húmidas. Curiosamente as outras ruas, as que são percorridas pelas pessoas “decentes” da cidade, não têm humidade e estão sempre pintadas.
Já me tenho perguntado se as ruas esquecidas choram o abandono, se não sentirão, sofridamente, o desdém de quem passa por engano ou apenas para atalhar caminho. Se sentem saudades doridas dos tempos em que eram novas, pintadas e iluminadas. Será a humidade sempre presente nestas velhas e sujas ruas fruto do seu desespero?
Sentirão as paredes o desprezo de quem por elas passa?
As ruas e vielas que percorro nos meus momentos de introspecção, são sujas, tristes e húmidas. Assim como os meus pensamentos! Por isso as procuro; procuro uma paisagem onde possa mimetizar o estado de espírito; é uma terapia, um cerimonial, uma insanidade inócua, um vazio desesperado por ser preenchido.
O anjo detalhadamente pintado na parede persegue-me; sinto como minha a sua expressão de perda, o seu desespero, a mutilação.
Revejo-lhe a face tapada pelas mãos de um realismo impressionante e parece-me ter notado algo brilhante parecido com uma gota de água escorrendo por baixo de uma das suas mãos. Teria sido ilusão de óptica, um preciosismo do artista ou o choro da velha parede?

1 comentário:

  1. Essa parede, assim como as vielas impregnadas de caos e de registos humanos, exalam mais sentimento e afecto que muita gente que conheço.
    Gostei de ler.
    Da próxima deixa o registo fotográfico da imagem, ou da viela.

    ResponderEliminar