segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Musicalidades

 




Há músicas assim, músicas em fios de água cristalina, água de nascente. Músicas de fino traço, que encerram uma panóplia de emoções.
A que escolhi não acompanha o texto, gerou o texto. É de uma suavidade assustadora, de uma melodia tremenda, arrepiante, um pouco sofrida.
Ao ouvi-la pela primeira vez, senti-me transportado para um jardim de Outono, desses carregados de árvores com folhas de tons quentes. E recordou-me que a vida é finita e que, por muito aliciante que a morte possa ser e é, há que aproveitar esta passagem.
Invejo o génio e a mestria de quem cria algo assim tão belo e sinto a leveza das folhas amarelas, castanhas e multicolores, desprendendo-se dos ramos, e dançando com o vento suave que as transporta pelo ar até ao chão, esse destino terminal de tudo quanto vive.
É outono, no seu final, um outono no fio das cordas dos violinos, na voz rouca das teclas do piano, no embalo melancólico de quem escuta.
Melhor? Só o sussurro de quem nos diz ao ouvido: “desejo-te”

Fumando memórias

 Não recordava quantas vezes a ouvira. Provavelmente, tantas quantas a melancolia lhe enchera os olhos de um vazio baço, virado para as memórias.

As suas memórias eram como uma mala de viagem estampada de autocolantes com os nomes das cidades, tão em voga nos anos 60 e 70. Memórias excessivas, memórias de excessos. Acendeu mais um cigarro, no borrão do anterior; era escusado gastar pedra de isqueiro, já bastava consumir os pulmões.
Gostaria que as memórias fossem como a cinza do cigarro: frágeis e leves. No entanto sabia –as densas, persistentes, incómodas.
Uma vez mais recordou-lhe a face e amaldiçoou a memória. O fumo escapava-se por entre os dedos, o fumo tinha a forma dela. Sempre que queimava a envenenada esperança de a voltar a encontrar, o fumo brincava maldosamente com ele formando a silhueta dela antes de desaparecer no ar.
Entrou a voz exactamente quando era suposto entrar, logo após aquele solo de viola que tanto o arrepiava. E a voz suplicava e as memórias ardiam-lhe os olhos e o fumo empurrava-as para os seus olhos doridos, batidos, cansados da imagem repetida, cada vez mais viva, em carne viva. E o tom suplicante erguia-se acima da bateria e a água escorria dessas janelas vazias, lenta, num movimento não linear.
O clímax musical, o soluço final e a imagem que não conseguia banir e a cabeça a latejar e o cigarro a acabar e a noite mais cerrada e infindável.
A voz calou-se no mesmo tom sussurrante em que começara.
Porque é que as memórias espinhosas não são como as músicas, interrogou-se ele? Porque é que não se podiam simplesmente calar?
Instalou-se o vazio no vazio da esperança. Achou por bem não passar de novo aquela música, acendeu novo cigarro e desejou ser vencido rapidamente pelo cansaço.
Em vão…
E, à medida que a noite avançava, a sombra dela alastrava sobre si.



quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Manifesto

 

Desata-se o nó da intolerância

Acentua-se a irritabilidade ferida

Não há paciência sadia

Apenas o desejo maior

De que morra a hipocrisia

Quero uma insanidade por medida

E que venha um terramoto

Que destrua as emoções

Que o desejo esmoreça

Que o amor adoeça

E a tentação adormeça

E que tudo apodreça

Quero berrar que não, não quero

Não me apetece, não me cola

Exijo um silêncio obrigatório

E uma solidão permitida

Decretada, respeitada e sentida

Que hajam multidões, mas mudas

E nem que a morte tudo arrase

Em torno do que de mim resta

Quero uma paz que me impeça

Esta loucura tardia



segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Doce desejo

 

Ontem sorriste-me como nunca e, naquela noite escura e chuvosa, aproveitei o vento e deixei-o levar-me até ti. Abracei-te no olhar e rodopiámos no ar como crianças atrevidas, num movimento contínuo de vida; atrevidamente felizes por entre as gotas de chuva, bebi-te os lábios nas palavras que os teu olhos me lançavam.

Devido ao vento, ou à tua presença fremente, acordei a meio da noite, assim de repente, imediatamente após te ter poisado no chão, num último rodopio sonhado.

Sentado na cama, sozinho e tonto de tanta dança, senti nos lábios um sabor há muito guardado, um calor da cor do desejo e com a forma de um beijo, beijado com paixão.

Ontem o vento comprimia a vidraça da janela do quarto e a chuva tudo lavava excepto a forma desejada do teu corpo encostado no meu.




quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Danças de luz taxadas por palavra ou Como ser alegremente fútil

 

Os fios de Sol do outono penetram através da vidraça. Esta é uma dessas tardes tranquilamente obtusas em que, comodamente sentado, pensas ideias e pensamentos avulso apenas por exercício e como forma de esfaqueares lentamente o ritmo ao tempo.
Fútil pensamento da tarde:
- Se as palavras utilizadas fossem taxadas individualmente, que consequências teria nos diálogos e nas relações interpessoais?
Enquanto divagas sobre o impacto financeiro na comunicação e começas a construir a tabela dos prós e contras, o teu olhar é desviado para o soalho onde os fios de sol, refractados pela vidraça, executam uma lenta, caótica e, no entanto, hipnótica dança nas travessas de madeira.
Quantas palavras não seriam poupadas, quantos silêncios ganhos tal como a atenção às expressões faciais tão expressivas?
A luz rodopiou de novo, desta vez ligeiramente para a esquerda e a sombra de um pequeno pássaro atalhou o seu voo ao longo da parede.
Se as palavras fossem taxadas, os olhares seriam bem atentos, as palavras seriam criteriosamente escolhidas e os charlatões, os “comunicadores” e os fãs confessos e viciados na sua voz, cuja intenção é apenas terem atenção a todo o custo ao imenso nada que transmitem ou leram e ouviram nos média, ficariam deprimidos.
Os pequenos raios de luz executam agora verdadeiros passos de tango argentino, e eu sinto-me transportado para uma das muitas salas de tango das ruas e ruelas de Buenos Aires.
Ah! Buenos Aires e os restaurantes em Puerto Madero, onde a luz é mais brilhante, a dança mais fluida e os silêncios mais tranquilos.
Definitivamente os latinos não iriam gostar de ver as suas longas conversas taxadas, mas sei que adoram a luz do Sol.
Os pequenos e frágeis raios de luz outonais transmitiram-me a beleza da dança das partículas luminosas e ensaiam a ultima dança do dia, aquela que acontece sempre que este lado da Terra vira as costas ao Sol. E nesta dança de morte lenta neste fim de tarde tranquilamente obtusa e fútil, declaro que o mundo seria muito melhor se as palavras fossem taxadas e a grande maioria das pessoas se dedicasse, de boca bem fechada, a observar a dança das partículas de luz, no soalho de um lugar



terça-feira, 20 de agosto de 2024

É tempo de seguir o tempo

 

É tempo de fazer o balanço

Aos sentimentos

Colhidos por tantos anos

Fragmentos coloridos de emoções

Formando paisagens doces

Gritos desesperados de dor

Rios de mágoas que nunca desaguam

 

É o final do Outono

Nas pontas das chamas

Que iluminam as noites mais escuras

Onde cavalgam as recordações

São as faces, tantas faces

Que em mim habitam

É o canto melancólico do quase final

Ou a vida em pequenos retalhos

 

É quase final de Outono

Tempo de balanço

Ao som da introspecção

Organizando as sombras

Dos meus genuínos pecados

 

E é tempo de sentir o tempo

Fluir no seu movimento

E preparar a jornada,

Que quase não tarda,

De finalmente o seguir,

De me deixar ir




terça-feira, 13 de agosto de 2024

Na tua sombra

 

Na tua sombra cabem as minhas desilusões

Botões de uma rosa murcha, quase amorfa

Desatinos em fragmentos de emoções


No teu cabelo, maré viva, sonho naufrágios

 Brisa sequiosa de um desejo fecundo

Porto que não alberga meus anseios

És miragem, eu deserto




quarta-feira, 3 de abril de 2024

Espero-te

 


Espero-te

Quando todos tiverem desistido de esperar

Quando o som da rua se calar

E os amantes se despedirem

Espero-te

Quando os sinos da igreja se atrasarem

E os cães vadios se acalmarem

Quando os barcos atracarem

Os botões da rosa se fecharem

E o violino parar de chorar

Espero-te

Mesmo que a madeira se transforme em bengala

E o Inverno se instale de vez

E já não tenha voz para te dizer

Tudo quanto guardei nesta espera

Espero-te

Porque sempre te esperei

Mesmo quando o não sabia

Espero-te

Quando todos tiverem desistido de esperar

Quando o som da rua se calar

E os amantes se despedirem

Espero-te

Quando os sinos da igreja se atrasarem

E os cães vadios se acalmarem

Quando os barcos atracarem

Os botões da rosa se fecharem

E o violino parar de chorar

Espero-te

Mesmo que a madeira se transforme em bengala

E o Inverno se instale de vez

E já não tenha voz para te dizer

Tudo quanto guardei nesta espera

Espero-te

Porque sempre te esperei

Mesmo quando o não sabia