É quase fim de ano; quase fim de ciclo, cada vez mais quase um fim.
É doloroso pensar no fim; mas este é o fim de ano, chamemos-lhe assim. E assim alcunhado deixa de ser doloroso e passa a ser alegre, um pouco melancólico talvez, mas supostamente divertido.
Por isso ergam-se os copos cheios de nada, brinde-se a coisas vazias de significado e embriaguemo-nos de uma falsa esperança.
Haja paz na terra e silêncio nas campas; o mundo é um imenso cemitério...
Quando oiço esta música, que adoro, pergunto-me sempre: -A qual delas se refere ele?
Se fosse dirigido a mim confesso que não saberia a que casa voltar. É que ao longo da nossa vida mudamos tantas vezes de casa e em cada uma deixamos uma mala de nós. Um ente querido morre e a nossa casa imediatamente muda e uma mala se perde; um amigo desaparece e a casa muda de novo e mais uma mala ficou para tras; um amor que acaba, que esmorece ou que arrefece e a casa muda e uma montanha de malas...
Um filho que sai, um animal de estimação que falece.
Voltar para onde? Já vivi em tanto lado e por causa disso quantas vezes não morri? Quantas malas de mim eu perdi?
Há apenas uma casa a que poderei regressar e um dia assim farei, porque assim terá de ser. E acredito que lá estarão, bem arrumadinhas por ordem cronológica, todas as malas que deixei em cada casa que perdi.
Enquanto esse dia não chega, não me canso de ouvir os One Republic interpretar esta música.
É quase sempre quando te encontras sozinho que ela vem,
suave e silenciosamente e se instala.
Apodera-se
da tua vontade e controla-te os pensamentos.
És o seu instrumento, um fio condutor entre o passado e o
presente, e o passado e o passado mais longínquo.
Leva-te por acontecimentos há muito adormecidos: momentos
de felicidade, situações embaraçosas, histórias dolorosas, dores que marcaram,
palavras que feriram, palavras que tocaram fundo.
Leva-te a recordar bocas há muto fechadas, sons remotos,
porém familiares. Faces que guardas no coração, corações que te fizeram crescer
e seres quem és.
Quando ela se instala, sedutora, ficas irremediavelmente
perdido; ela é uma droga poderosa que te transporta no tempo, entorpecido. Não
resistes; melhor, não tentas resistir, apenas te deixas levar para outras
dimensões, caminhos antigos, sentires profundos. Voltas a vielas escuras,
húmidas e escorregadias que evitaste lembrar por muitos anos; voltas a sentir
sob os pés aquela areia fina e húmida por onde corrias para mergulhar nas ondas
do mar, esse mar agreste de águas frias e ondas traiçoeiras cujo cheiro a algas
e iodo te marcaram a infância e a juventude. Voltas a sentir a ansiedade e os
medos que, em criança, te marcaram fins de tarde (muitas vezes sem qualquer
razão de ser). Voltas a ser pequeno e frágil, jovem atrevido e irreverente.
E tudo porque ao longo do tempo procuras cada vez mais
estar sozinho, facilitando-lhe a presença, facultando-lhe o domínio, deixando-a
possuir-te.
A cadeira de verga que
almofadaste e colocaste em frente à porta da varanda.
Essa cadeira onde te
sentavas ao fim da tarde, naquele período em que o sol nos brinda com um brilho
de luz especial, aquele brilho de quem se vai e só volta no dia seguinte.
Esse brilho que se
espelhava nos teus olhos quando eu entrava e te viravas de frente para mim.
Era nesse momento que o
sol sentia inveja de mim.
Há muito que te foste; a
cadeira, essa, continua no mesmo sítio, recordando-me tempos em que eu próprio tive
inveja de mim.
Mais ninguém se sentou nela
desde esse dia; enquanto me recordar do meu nome ninguém se sentará nessa
cadeira de verga por ti almofadada.
Sinto que um dia, quando
já eu próprio me tiver “posto” para lá do horizonte da memória, virás como se
nada se tivesse passado e te sentarás na cadeira no preciso momento em que o
sol te brindar com o seu brilho que, de uma forma muito especial irradiará de
teus lindos olhos.
Apenas a lua será testemunha
desse desencontro e sei que sentirei uma inveja imensa dessa lua Cheia do teu
brilho.
Não podes permitir-te ceder ao desejo. Apenas não deixes que os sentidos te controlem.
Pensa-nos como quiseres, mas não deixes que seja em modo de desejo.
O desejo vicia, tolhe a razão e tu gostas de te sentir a controlar os teus actos. Não é que os controles, apenas crês fazê-lo. Não deixes que o desejo,
esse enviesado desejo, te tolha as ideias.
Concentra-te em desejar não desejar que aconteça e não te permitas abandonar a estas mãos.
Já eu anseio que me desejes e que, num momento de obtuso bloqueio te entregues nas minhas mãos e deixes que do teu corpo faça uma tela de sentidos.
Sei que não deves querer, sei que não devo tentar-te,
e, no entanto, desejo-te fortemente e espero que te permitas ceder.
Não o faças, mas se o fizeres, e eu me permitir permitir-te, então não presto.
Vai tu à frente; vai e espera porque eu prometo-te que, quando a altura chegar, irei lá ter para voltarmos a percorrer todos os lugares que conheciamos e onde rimos.
Já que vais primeiro aproveita para disfrutar da novidade, toma os teus cafés com açucar, sempre acompanhados de um copo de água e de um SG filtro.
E descansa; sei que nada disseste mas ultimamente tem sido tão duro para ti, tão pesado o fardo da dor silenciosa, que mereces um descanso prolongado.
Vai, vai tu à frente.
Vai e em breve lá estarei também com o meu cigarro de tabaco negro, com o meu sorriso atrevido acompanhando as tuas gargalhadas. Há quanto tempo não te oiço uma.