A porta, em
madeira velha e muito gasta, dava acesso a um pátio exterior largo, feito de
pedra granítica que outros, muito tempo antes, cortaram e endireitaram à mão.
As paredes da casa, vestidas de plantas trepadeiras, creio que eram
buganvílias, davam cor e aroma ao conjunto. As tardes de junho eram perfumadas
nesse pátio virado a oeste. Ao fundo, quase na curvatura do terreno, a vinha e
o olival.
À volta, os contrafortes
da Serra da Estrela recortados por profundos vales por onde circulavam riachos
de água gelada e límpida. Recordo os salgueiros, fortemente enraizados nas
margens, totalmente desgrenhados, folhas e ramos beijando a superfície das
águas. Eram locais de sombra, de erva viçosa, de convite a longas sonecas com
os pés dentro da água.
Aqui e ali um
castanheiro, uma nogueira-imponentes no porte- e uma tília. As tílias eram as
minhas preferidas; perfumavam o ar quente por todo o lado; um perfume
envolvente e calmante. Os blocos de rocha, blocos arredondados de diversos
tamanhos, saídos do solo, pintalgados de líquenes, conviviam com as grandes
árvores. Não sei quem suportava quem, mas eram conjuntos harmoniosos.
Assim eram as
pinceladas serranas da minha juventude em dias em que a primavera há muito
tinha escancarado as suas portas ao verão.
Para mim tudo era
calmo e equilibrado; para mim ainda a primavera da vida estava a começar e não
se imaginava que aquele claro e limpo horizonte tantas vezes mais tarde viesse
a mostrar-se negro escuro, tempestuoso.
Há muito que não
visito esse muito meu espaço da infância e início da juventude, mas sinto-lhe a
falta; por vezes sinto uma saudade imensa desses tempos. Desconfio que não
voltarei a visitá-los; fazê-lo poderia ser uma desilusão e assim preservo estas
memórias que me são caras.
Não, não deverei
voltar aquele local, mas sinto-o, sei-o. Tenho-o entranhado nos ossos, é parte
do meu código genético; é a Serra que há em mim.
Por vezes, ao fim
da tarde, naqueles momentos em que o sol já baixo no horizonte, nos presenteia
com uma luz difusa e mágica, eu acredito ouvir os seus passos breves e ligeiros
no corredor. E uma fragância fresca frutada, como a que usava, aflora-me as
narinas. São breves instantes de breve loucura, momentos de ilusão que me
permitem manter um certo equilíbrio emocional, em particular quando a bendita
solidão me ataca de mansinho e me embala no seu canto irresistível.
É terrivelmente cativante
a solidão, apenas suplantada pela tristeza.
Esta última seduz-nos,
envolve-nos, apodera-se da nossa vontade e alimenta-se das nossas fraquezas.
Por isso essa
breve ilusão de a sentir, tanto tempo depois, sempre que a luz obliquamente
breve do sol brinca no meu soalho, é um escudo que me protege da solidão e da
tristeza por instantes, embora eu, infalivelmente me volte a render a ambas e a
adormecer nos seus braços a cada noite.
A rua era estreita e íngreme. As
casas, estreitas e altas, escorriam humidade pelas cicatrizes centenárias.
O chão, de calhau rolado, era
um ringue de patinagem no inverno. O sol dificilmente descia às pedras e o
cheiro a mofo ira como um perfume de marca.
A minha cidade tinha uma parte
muito antiga, corroidamente velha, deliciosamente genuína, onde as casas eram
testemunhas das estórias vividas naquelas ruas estreitas e essas mesmas
testemunhavam muitas cenas caseiras. Eram como as velhas intriguistas, as casas
e as ruas empedradas.
No verão, no quente verão da
minha cidade, era um descanso passar por essas ruas frescas, amenas, calmantes.
A minha cidade, a minha velha
cidade é um misto de encanto e sedução. E é só minha.
Há muito que deixei de a
habitar; visito-a, de fugida porque me dói a transformação que se tem operado.
Não porque esteja pior, mas porque as minhas imagens dela são outras, são mais
bonitas, são vistas pelos olhos de uma criança e pelos de um adolescente e,
finalmente de um jovem adulto.
E essas sim, são as imagens da
minha verdadeira cidade, aquelas que preservo e amo.
Por isso as suas ruas
continuam ingremes e estreitas e as casas suam a sua velha podridão, libertando
um perfume bafiento único. E assim igualei a minha cidade, envelhecendo cada um
ao ritmo do seu tempo.
É bela a minha cidade, conquistando a serra, afagando o rio que a banha.
E é só minha porque mais ninguém a vê como eu sempre a fui vendo.