Ontem sorriste-me como nunca e, naquela noite escura e chuvosa, aproveitei
o vento e deixei-o levar-me até ti. Abracei-te no olhar e rodopiámos no ar como
crianças atrevidas, num movimento contínuo de vida; atrevidamente felizes por
entre as gotas de chuva, bebi-te os lábios nas palavras que os teus olhos me
lançavam.
Devido ao vento, ou à tua presença fremente, acordei a meio da noite, assim
de repente, imediatamente após te ter poisado no chão, num último rodopio
sonhado.
Sentado na cama, sozinho e tonto de tanta dança, senti nos lábios um sabor
há muito guardado, um calor da cor do desejo e com a forma de um beijo, beijado
com paixão.
Ontem o vento comprimia a vidraça da janela do quarto e a chuva tudo lavava
excepto a forma desejada do teu corpo encostado no meu.
Tenho um amigo de
estimação. Não é um amigo convencional, é uma daquelas pessoas que partilham
comigo o gosto pela tranquilidade de um pequeno espaço verde na cidade; um
desses lugares onde se avista a desembocadura do rio, rodeado de um sossego que
permite ouvir os pensamentos. Recorro a esse local sempre que me farto de
pessoas; eu farto-me com frequência de pessoas.
Esse tal amigo tem esses
dois pontos em comum comigo: farta-se de pessoas e gosta de locais tranquilos
onde se possa ouvir o som mudo do pensamento. Apesar da diferença de gerações,
acabámos por quebrar o bendito silêncio do local ao fim de inúmeros encontros e
apenas por causa de um vício socialmente malquisto que partilhamos: o tabaco.
Os fumadores são os proscritos do seculo XXI, são perseguidos, mal vistos e
nada recomendáveis. Por isso, restringem-lhes cada vez mais a liberdade de
fumar; coisas de Santa Inquisição transpostas para os dias de hoje.
O meu amigo é de um
cinismo contagiante e, como todo o solitário, adora falar da sua vida, das
experiências vividas, do que sente, do seu pequeno mundo.
Recentemente o tema foi o
amor e ele, como quase sempre, opinou fundamentando-se na sua vivência do tema.
Retive o essencial colocando entre aspas as suas palavras, para não prevaricar
nos direitos de autor.
Em determinado momento da
sua vida conheceu uma senhora por quem se apaixonou e a coisa foi séria:
“… dizia amar-me, como
quem aprendeu lendo um tratado sobre a matéria. Dizia-o como quem come tremoços
entre dois tragos de cerveja. De uma certeza absoluta emoldurada nuns olhos
credíveis. Inevitavelmente, a “confusão de espírito” acabou por revelar-se em
contradições convulsivas. Digo propositadamente inevitavelmente e não
fatalmente. Primeiro porque era realmente inevitável, tanto quanto conhecer a
verdade da mentira. Depois porque (e aí retive-lhe da face um sorriso
ironicamente maroto), na sequência tive a sorte de encontrar quem, não
utilizando a palavra amor, me tratou sempre como realmente se trata quem se
ama. Por algum tempo detestei a palavra amor, mais tarde acabei por lhe dar o
devido apreço”.
Solidário com as palavras
desse velho amigo de ocasião, tenho para mim que não se aprende a amar, não se
usa amar porque se quer ou porque soa bem ou mesmo, porque convém em
determinado momento.
Sente-se; apenas isso:
sente-se. Se me perguntarem qual a definição de amor direi, sem qualquer veia
poética: Amar é algo que se sente de uma forma muito especial e inconfundível
(triste definição, eu sei).
As pessoas usam a palavra
de forma fácil, por vezes convencidas de que amam, outras, de forma leviana,
enganadora, mas nem todos passaram alguma vez por esse agradável desconforto
que é sentir amor por outra pessoa.
Obviamente não me refiro
ao amor familiar, mas aquele sentimento tão peculiar nutrido por alguém por
quem não se tem qualquer laço de sangue. Não sei definir o amor porque não
gostei de lhe conjugar o verbo. Comigo, foi uma experiência tão agradável e, ao
mesmo tempo tão desconfortável, que julgo ter criado uma defesa psicológica que
me alerta sempre que há indícios do sintoma. Admito mesmo que é dos poucos
verbos onde mais erro a conjugação. Enrola-se-me a língua, paralisa-se-me o
maxilar.
Sei que o amor deslumbra,
é egoísta, cega, é ingrato, possessivo. Sei que é difícil de cultivar e manter.
Também sei que dá uma ressaca intemporal; deixa cicatrizes que se fazem sentir
sempre que têm oportunidade. É um caminho de sentido único, acelerado e,
normalmente, apontado a uma parede de betão.
E, no entanto, ninguém
está imune a ele.
Mas o verdadeiro, aquele
que de facto é sentido e não o que se cospe na cara de outro porque fica bem,
porque convém, porque, acima de tudo, é fácil de dizer, embora mais tarde venha
a ter consequências devastadoras.
Confesso que continuo a
sentir uma espécie de alergia à palavra.
Era certamente a hora
ideal para um desentendimento, mas não aconteceu. Não ocorreu nenhum eclipse,
nem um furacão; na verdade nenhuma catástrofe natural aconteceu.
Eles cruzaram-se,
olharam-se, decerto que se cheiraram porque, independentemente de tudo, o
instinto primitivo ainda prevalece sobre a razão e o cheiro é um dos maiores
estímulos da atracção, mas não se falaram.
Os olhares, magoados de
ambos acertaram no outro como se fossem punhos cerrados viajando pelo ar em
fúria, mas nada disseram.
E passaram um pelo outro,
como se nada existisse, como se nada fosse, como se agora tivesse sido antes.
(texto escrito durante o período do confinamento pandémico)
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Agora sei que as gotas de chuva têm um compasso acertado e concertado sobrepondo-se a todos os outros sons.
Nestes tempos certamente incertos, os sons que eram habitualmente menos ouvidos tornaram-se certamente mais escutados.
Ao fim do dia sento-me no sofá, em frente à janela vendo a chuva cair no seu compasso vaidoso, ruidoso mas calmante, contrariando estes tempos tão desconcertantes, fazendo um compasso nas incertezas que habitualmente me inundam o pensamento. Penso nos que me preocupam e nos que não resistiram e apenas suspiro.
Há músicas assim, músicas em fios de água cristalina, água de nascente. Músicas de fino traço, que encerram uma panóplia de emoções.
A que escolhi não acompanha o texto, gerou o texto. É de uma suavidade assustadora, de uma melodia tremenda, arrepiante, um pouco sofrida.
Ao ouvi-la pela primeira vez, senti-me transportado para um jardim de Outono, desses carregados de árvores com folhas de tons quentes. E recordou-me que a vida é finita e que, por muito aliciante que a morte possa ser e é, há que aproveitar esta passagem.
Invejo o génio e a mestria de quem cria algo assim tão belo e sinto a leveza das folhas amarelas, castanhas e multicolores, desprendendo-se dos ramos, e dançando com o vento suave que as transporta pelo ar até ao chão, esse destino terminal de tudo quanto vive.
É outono, no seu final, um outono no fio das cordas dos violinos, na voz rouca das teclas do piano, no embalo melancólico de quem escuta.
Melhor? Só o sussurro de quem nos diz ao ouvido: “desejo-te”
Não recordava quantas vezes a ouvira. Provavelmente, tantas quantas a melancolia lhe enchera os olhos de um vazio baço, virado para as memórias.
As suas memórias eram como uma mala de viagem estampada de autocolantes com os nomes das cidades, tão em voga nos anos 60 e 70. Memórias excessivas, memórias de excessos. Acendeu mais um cigarro, no borrão do anterior; era escusado gastar pedra de isqueiro, já bastava consumir os pulmões.
Gostaria que as memórias fossem como a cinza do cigarro: frágeis e leves. No entanto sabia –as densas, persistentes, incómodas.
Uma vez mais recordou-lhe a face e amaldiçoou a memória. O fumo escapava-se por entre os dedos, o fumo tinha a forma dela. Sempre que queimava a envenenada esperança de a voltar a encontrar, o fumo brincava maldosamente com ele formando a silhueta dela antes de desaparecer no ar.
Entrou a voz exactamente quando era suposto entrar, logo após aquele solo de viola que tanto o arrepiava. E a voz suplicava e as memórias ardiam-lhe os olhos e o fumo empurrava-as para os seus olhos doridos, batidos, cansados da imagem repetida, cada vez mais viva, em carne viva. E o tom suplicante erguia-se acima da bateria e a água escorria dessas janelas vazias, lenta, num movimento não linear.
O clímax musical, o soluço final e a imagem que não conseguia banir e a cabeça a latejar e o cigarro a acabar e a noite mais cerrada e infindável.
A voz calou-se no mesmo tom sussurrante em que começara.
Porque é que as memórias espinhosas não são como as músicas, interrogou-se ele? Porque é que não se podiam simplesmente calar?
Instalou-se o vazio no vazio da esperança. Achou por bem não passar de novo aquela música, acendeu novo cigarro e desejou ser vencido rapidamente pelo cansaço.
Em vão…
E, à medida que a noite avançava, a sombra dela alastrava sobre si.
Ontem sorriste-me como
nunca e, naquela noite escura e chuvosa, aproveitei o vento e deixei-o levar-me
até ti. Abracei-te no olhar e rodopiámos no ar como crianças atrevidas, num
movimento contínuo de vida; atrevidamente felizes por entre as gotas de chuva,
bebi-te os lábios nas palavras que os teu olhos me lançavam.
Devido ao vento, ou à tua
presença fremente, acordei a meio da noite, assim de repente, imediatamente
após te ter poisado no chão, num último rodopio sonhado.
Sentado na cama, sozinho
e tonto de tanta dança, senti nos lábios um sabor há muito guardado, um calor
da cor do desejo e com a forma de um beijo, beijado com paixão.
Ontem o vento comprimia a
vidraça da janela do quarto e a chuva tudo lavava excepto a forma desejada do
teu corpo encostado no meu.
Os fios de Sol do outono penetram através da vidraça. Esta é uma dessas tardes tranquilamente obtusas em que, comodamente sentado, pensas ideias e pensamentos avulso apenas por exercício e como forma de esfaqueares lentamente o ritmo ao tempo.
Fútil pensamento da tarde:
- Se as palavras utilizadas fossem taxadas individualmente, que consequências teria nos diálogos e nas relações interpessoais?
Enquanto divagas sobre o impacto financeiro na comunicação e começas a construir a tabela dos prós e contras, o teu olhar é desviado para o soalho onde os fios de sol, refractados pela vidraça, executam uma lenta, caótica e, no entanto, hipnótica dança nas travessas de madeira.
Quantas palavras não seriam poupadas, quantos silêncios ganhos tal como a atenção às expressões faciais tão expressivas?
A luz rodopiou de novo, desta vez ligeiramente para a esquerda e a sombra de um pequeno pássaro atalhou o seu voo ao longo da parede.
Se as palavras fossem taxadas, os olhares seriam bem atentos, as palavras seriam criteriosamente escolhidas e os charlatões, os “comunicadores” e os fãs confessos e viciados na sua voz, cuja intenção é apenas terem atenção a todo o custo ao imenso nada que transmitem ou leram e ouviram nos média, ficariam deprimidos.
Os pequenos raios de luz executam agora verdadeiros passos de tango argentino, e eu sinto-me transportado para uma das muitas salas de tango das ruas e ruelas de Buenos Aires.
Ah! Buenos Aires e os restaurantes em Puerto Madero, onde a luz é mais brilhante, a dança mais fluida e os silêncios mais tranquilos.
Definitivamente os latinos não iriam gostar de ver as suas longas conversas taxadas, mas sei que adoram a luz do Sol.
Os pequenos e frágeis raios de luz outonais transmitiram-me a beleza da dança das partículas luminosas e ensaiam a ultima dança do dia, aquela que acontece sempre que este lado da Terra vira as costas ao Sol. E nesta dança de morte lenta neste fim de tarde tranquilamente obtusa e fútil, declaro que o mundo seria muito melhor se as palavras fossem taxadas e a grande maioria das pessoas se dedicasse, de boca bem fechada, a observar a dança das partículas de luz, no soalho de um lugar
A porta, em
madeira velha e muito gasta, dava acesso a um pátio exterior largo, feito de
pedra granítica que outros, muito tempo antes, cortaram e endireitaram à mão.
As paredes da casa, vestidas de plantas trepadeiras, creio que eram
buganvílias, davam cor e aroma ao conjunto. As tardes de junho eram perfumadas
nesse pátio virado a oeste. Ao fundo, quase na curvatura do terreno, a vinha e
o olival.
À volta, os contrafortes
da Serra da Estrela recortados por profundos vales por onde circulavam riachos
de água gelada e límpida. Recordo os salgueiros, fortemente enraizados nas
margens, totalmente desgrenhados, folhas e ramos beijando a superfície das
águas. Eram locais de sombra, de erva viçosa, de convite a longas sonecas com
os pés dentro da água.
Aqui e ali um
castanheiro, uma nogueira-imponentes no porte- e uma tília. As tílias eram as
minhas preferidas; perfumavam o ar quente por todo o lado; um perfume
envolvente e calmante. Os blocos de rocha, blocos arredondados de diversos
tamanhos, saídos do solo, pintalgados de líquenes, conviviam com as grandes
árvores. Não sei quem suportava quem, mas eram conjuntos harmoniosos.
Assim eram as
pinceladas serranas da minha juventude em dias em que a primavera há muito
tinha escancarado as suas portas ao verão.
Para mim tudo era
calmo e equilibrado; para mim ainda a primavera da vida estava a começar e não
se imaginava que aquele claro e limpo horizonte tantas vezes mais tarde viesse
a mostrar-se negro escuro, tempestuoso.
Há muito que não
visito esse muito meu espaço da infância e início da juventude, mas sinto-lhe a
falta; por vezes sinto uma saudade imensa desses tempos. Desconfio que não
voltarei a visitá-los; fazê-lo poderia ser uma desilusão e assim preservo estas
memórias que me são caras.
Não, não deverei
voltar aquele local, mas sinto-o, sei-o. Tenho-o entranhado nos ossos, é parte
do meu código genético; é a Serra que há em mim.