(texto escrito durante o período do confinamento pandémico)
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Agora sei que as gotas de chuva têm um compasso acertado e concertado sobrepondo-se a todos os outros sons.
Nestes tempos certamente incertos, os sons que eram habitualmente menos ouvidos tornaram-se certamente mais escutados.
Ao fim do dia sento-me no sofá, em frente à janela vendo a chuva cair no seu compasso vaidoso, ruidoso mas calmante, contrariando estes tempos tão desconcertantes, fazendo um compasso nas incertezas que habitualmente me inundam o pensamento. Penso nos que me preocupam e nos que não resistiram e apenas suspiro.
Há músicas assim, músicas em fios de água cristalina, água de nascente. Músicas de fino traço, que encerram uma panóplia de emoções.
A que escolhi não acompanha o texto, gerou o texto. É de uma suavidade assustadora, de uma melodia tremenda, arrepiante, um pouco sofrida.
Ao ouvi-la pela primeira vez, senti-me transportado para um jardim de Outono, desses carregados de árvores com folhas de tons quentes. E recordou-me que a vida é finita e que, por muito aliciante que a morte possa ser e é, há que aproveitar esta passagem.
Invejo o génio e a mestria de quem cria algo assim tão belo e sinto a leveza das folhas amarelas, castanhas e multicolores, desprendendo-se dos ramos, e dançando com o vento suave que as transporta pelo ar até ao chão, esse destino terminal de tudo quanto vive.
É outono, no seu final, um outono no fio das cordas dos violinos, na voz rouca das teclas do piano, no embalo melancólico de quem escuta.
Melhor? Só o sussurro de quem nos diz ao ouvido: “desejo-te”
Não recordava quantas vezes a ouvira. Provavelmente, tantas quantas a melancolia lhe enchera os olhos de um vazio baço, virado para as memórias.
As suas memórias eram como uma mala de viagem estampada de autocolantes com os nomes das cidades, tão em voga nos anos 60 e 70. Memórias excessivas, memórias de excessos. Acendeu mais um cigarro, no borrão do anterior; era escusado gastar pedra de isqueiro, já bastava consumir os pulmões.
Gostaria que as memórias fossem como a cinza do cigarro: frágeis e leves. No entanto sabia –as densas, persistentes, incómodas.
Uma vez mais recordou-lhe a face e amaldiçoou a memória. O fumo escapava-se por entre os dedos, o fumo tinha a forma dela. Sempre que queimava a envenenada esperança de a voltar a encontrar, o fumo brincava maldosamente com ele formando a silhueta dela antes de desaparecer no ar.
Entrou a voz exactamente quando era suposto entrar, logo após aquele solo de viola que tanto o arrepiava. E a voz suplicava e as memórias ardiam-lhe os olhos e o fumo empurrava-as para os seus olhos doridos, batidos, cansados da imagem repetida, cada vez mais viva, em carne viva. E o tom suplicante erguia-se acima da bateria e a água escorria dessas janelas vazias, lenta, num movimento não linear.
O clímax musical, o soluço final e a imagem que não conseguia banir e a cabeça a latejar e o cigarro a acabar e a noite mais cerrada e infindável.
A voz calou-se no mesmo tom sussurrante em que começara.
Porque é que as memórias espinhosas não são como as músicas, interrogou-se ele? Porque é que não se podiam simplesmente calar?
Instalou-se o vazio no vazio da esperança. Achou por bem não passar de novo aquela música, acendeu novo cigarro e desejou ser vencido rapidamente pelo cansaço.
Em vão…
E, à medida que a noite avançava, a sombra dela alastrava sobre si.
Ontem sorriste-me como
nunca e, naquela noite escura e chuvosa, aproveitei o vento e deixei-o levar-me
até ti. Abracei-te no olhar e rodopiámos no ar como crianças atrevidas, num
movimento contínuo de vida; atrevidamente felizes por entre as gotas de chuva,
bebi-te os lábios nas palavras que os teu olhos me lançavam.
Devido ao vento, ou à tua
presença fremente, acordei a meio da noite, assim de repente, imediatamente
após te ter poisado no chão, num último rodopio sonhado.
Sentado na cama, sozinho
e tonto de tanta dança, senti nos lábios um sabor há muito guardado, um calor
da cor do desejo e com a forma de um beijo, beijado com paixão.
Ontem o vento comprimia a
vidraça da janela do quarto e a chuva tudo lavava excepto a forma desejada do
teu corpo encostado no meu.
Os fios de Sol do outono penetram através da vidraça. Esta é uma dessas tardes tranquilamente obtusas em que, comodamente sentado, pensas ideias e pensamentos avulso apenas por exercício e como forma de esfaqueares lentamente o ritmo ao tempo.
Fútil pensamento da tarde:
- Se as palavras utilizadas fossem taxadas individualmente, que consequências teria nos diálogos e nas relações interpessoais?
Enquanto divagas sobre o impacto financeiro na comunicação e começas a construir a tabela dos prós e contras, o teu olhar é desviado para o soalho onde os fios de sol, refractados pela vidraça, executam uma lenta, caótica e, no entanto, hipnótica dança nas travessas de madeira.
Quantas palavras não seriam poupadas, quantos silêncios ganhos tal como a atenção às expressões faciais tão expressivas?
A luz rodopiou de novo, desta vez ligeiramente para a esquerda e a sombra de um pequeno pássaro atalhou o seu voo ao longo da parede.
Se as palavras fossem taxadas, os olhares seriam bem atentos, as palavras seriam criteriosamente escolhidas e os charlatões, os “comunicadores” e os fãs confessos e viciados na sua voz, cuja intenção é apenas terem atenção a todo o custo ao imenso nada que transmitem ou leram e ouviram nos média, ficariam deprimidos.
Os pequenos raios de luz executam agora verdadeiros passos de tango argentino, e eu sinto-me transportado para uma das muitas salas de tango das ruas e ruelas de Buenos Aires.
Ah! Buenos Aires e os restaurantes em Puerto Madero, onde a luz é mais brilhante, a dança mais fluida e os silêncios mais tranquilos.
Definitivamente os latinos não iriam gostar de ver as suas longas conversas taxadas, mas sei que adoram a luz do Sol.
Os pequenos e frágeis raios de luz outonais transmitiram-me a beleza da dança das partículas luminosas e ensaiam a ultima dança do dia, aquela que acontece sempre que este lado da Terra vira as costas ao Sol. E nesta dança de morte lenta neste fim de tarde tranquilamente obtusa e fútil, declaro que o mundo seria muito melhor se as palavras fossem taxadas e a grande maioria das pessoas se dedicasse, de boca bem fechada, a observar a dança das partículas de luz, no soalho de um lugar
A porta, em
madeira velha e muito gasta, dava acesso a um pátio exterior largo, feito de
pedra granítica que outros, muito tempo antes, cortaram e endireitaram à mão.
As paredes da casa, vestidas de plantas trepadeiras, creio que eram
buganvílias, davam cor e aroma ao conjunto. As tardes de junho eram perfumadas
nesse pátio virado a oeste. Ao fundo, quase na curvatura do terreno, a vinha e
o olival.
À volta, os contrafortes
da Serra da Estrela recortados por profundos vales por onde circulavam riachos
de água gelada e límpida. Recordo os salgueiros, fortemente enraizados nas
margens, totalmente desgrenhados, folhas e ramos beijando a superfície das
águas. Eram locais de sombra, de erva viçosa, de convite a longas sonecas com
os pés dentro da água.
Aqui e ali um
castanheiro, uma nogueira-imponentes no porte- e uma tília. As tílias eram as
minhas preferidas; perfumavam o ar quente por todo o lado; um perfume
envolvente e calmante. Os blocos de rocha, blocos arredondados de diversos
tamanhos, saídos do solo, pintalgados de líquenes, conviviam com as grandes
árvores. Não sei quem suportava quem, mas eram conjuntos harmoniosos.
Assim eram as
pinceladas serranas da minha juventude em dias em que a primavera há muito
tinha escancarado as suas portas ao verão.
Para mim tudo era
calmo e equilibrado; para mim ainda a primavera da vida estava a começar e não
se imaginava que aquele claro e limpo horizonte tantas vezes mais tarde viesse
a mostrar-se negro escuro, tempestuoso.
Há muito que não
visito esse muito meu espaço da infância e início da juventude, mas sinto-lhe a
falta; por vezes sinto uma saudade imensa desses tempos. Desconfio que não
voltarei a visitá-los; fazê-lo poderia ser uma desilusão e assim preservo estas
memórias que me são caras.
Não, não deverei
voltar aquele local, mas sinto-o, sei-o. Tenho-o entranhado nos ossos, é parte
do meu código genético; é a Serra que há em mim.
Por vezes, ao fim
da tarde, naqueles momentos em que o sol já baixo no horizonte, nos presenteia
com uma luz difusa e mágica, eu acredito ouvir os seus passos breves e ligeiros
no corredor. E uma fragância fresca frutada, como a que usava, aflora-me as
narinas. São breves instantes de breve loucura, momentos de ilusão que me
permitem manter um certo equilíbrio emocional, em particular quando a bendita
solidão me ataca de mansinho e me embala no seu canto irresistível.
É terrivelmente cativante
a solidão, apenas suplantada pela tristeza.
Esta última seduz-nos,
envolve-nos, apodera-se da nossa vontade e alimenta-se das nossas fraquezas.
Por isso essa
breve ilusão de a sentir, tanto tempo depois, sempre que a luz obliquamente
breve do sol brinca no meu soalho, é um escudo que me protege da solidão e da
tristeza por instantes, embora eu, infalivelmente me volte a render a ambas e a
adormecer nos seus braços a cada noite.
A rua era estreita e íngreme. As
casas, estreitas e altas, escorriam humidade pelas cicatrizes centenárias.
O chão, de calhau rolado, era
um ringue de patinagem no inverno. O sol dificilmente descia às pedras e o
cheiro a mofo ira como um perfume de marca.
A minha cidade tinha uma parte
muito antiga, corroidamente velha, deliciosamente genuína, onde as casas eram
testemunhas das estórias vividas naquelas ruas estreitas e essas mesmas
testemunhavam muitas cenas caseiras. Eram como as velhas intriguistas, as casas
e as ruas empedradas.
No verão, no quente verão da
minha cidade, era um descanso passar por essas ruas frescas, amenas, calmantes.
A minha cidade, a minha velha
cidade é um misto de encanto e sedução. E é só minha.
Há muito que deixei de a
habitar; visito-a, de fugida porque me dói a transformação que se tem operado.
Não porque esteja pior, mas porque as minhas imagens dela são outras, são mais
bonitas, são vistas pelos olhos de uma criança e pelos de um adolescente e,
finalmente de um jovem adulto.
E essas sim, são as imagens da
minha verdadeira cidade, aquelas que preservo e amo.
Por isso as suas ruas
continuam ingremes e estreitas e as casas suam a sua velha podridão, libertando
um perfume bafiento único. E assim igualei a minha cidade, envelhecendo cada um
ao ritmo do seu tempo.
É bela a minha cidade, conquistando a serra, afagando o rio que a banha.
E é só minha porque mais ninguém a vê como eu sempre a fui vendo.